Um Mergulho Profundo na Polarização

Muito antes destes turbulentos dias atuais[1]  aumentarem ainda mais a insegurança em relação ao futuro, já se avistavam os sinais de uma grave polarização de opiniões, facilitada por toda a crise política e econômica dos anos anteriores. Este artigo não tem como objetivo apontar culpados ou enveredar na direção de um julgamento político, pelo contrário, pensamos em realizar um mergulho em direção às profundezas dos mecanismos mais básicos da psique humana que possibilitariam a criação e divisão dos discursos correntes em dois polos cada vez mais distantes entre si.

Antes de nosso primeiro mergulho, precisamos averiguar a superfície, ou seja, o que podemos enxergar de mais manifesto sobre este fenômeno sem precisarmos adentrar em um meio diferente do nosso usual.

Por definição, a polarização é um conceito físico aplicado a ondas eletromagnéticas, mas com uso cada vez mais frequente no aspecto social e político. Neste sentido, se trata do direcionamento da atenção, ações e opiniões para lados opostos, em uma polarização como positivo x negativo, ou norte x sul ou direita x esquerda. De fácil utilização, esta manobra é eficaz, tendo em vista que não é de hoje a tendência humana de criar lados – polos – a serem vistos como opostos, visões de mundo ou de moralidade a serem combatidas, dogmas a serem eliminados por sua diferença daqueles aceitos por um grupo dominante. De novo, isto tudo não tem nada…

Mas, os tempos passam e a tecnologia sim, inova a cada dia. Vista como o ferramental que atravessa a experiência humana, ela tem sido, cada vez mais, aplicada ao comportamento. Área onde evoluiu, indubitavelmente, tanto em alcance (internet e redes sociais) quanto em profundidade de atuação (o maior entendimento da mente humana aplicado ao Marketing). Neste sentido, sua atuação fica ainda mais pungente quanto mais alinhada está com elementos estruturantes de nosso psiquismo, ou seja, com processos que são parte de nosso funcionamento normal, necessários, mas que com o conhecimento certo (??) podem ser uma poderosa ferramenta de persuasão de indivíduos e massas.

Neste caso, o que está em jogo quando falamos em polarização do pensamento? Bem, para isto, precisamos começar – do começo – e nos prepararmos para o primeiro mergulho de averiguação das águas.

Um dos pais das Relações Públicas, e grande influência no Marketing, foi o Austríaco/Norte Americano Edward Bernays que, não por coincidência, era sobrinho de Freud. Não coincidência porque as práticas de Bernays utilizavam o entendimento do psíquico para o avesso da ética psicanalítica, ou seja, utiliza o entendimento de estruturas básicas do funcionamento mental para a manipulação e direcionamento da opinião pública.

Bernays, descobriu o quanto informações direcionadas poderiam influenciar o comportamento das pessoas, assim como seus medos e desejos podem ser aliados do mercado quando utilizados para mudar a relação de consumo: da necessidade para a compra pelo simples desejo. Sim, embora pouco conhecido, ele foi um dos precursores desta mudança nos padrões de consumo, gerando o que hoje chamamos de consumismo, para resolver impasses econômicos das aceleradas indústrias da década de 1920 (Curtis, 2002).

É com estes princípios que Bernays cria o que seria chamado de “engenharia do consentimento” (Engineering of Consent), conjunto de técnicas que se baseava no entendimento da Psicologia e Ciências Sociais para direcionar a opinião pública a apoiar ideias ou programas, sejam eles para vendas de produtos, ou conceitos políticos e estatais[2].

Mas, isto é apenas para ilustrar como este desconhecido pai do Marketing era habilidoso em seu labor pois, o grande salto que importa para nosso mergulho, está na aliança de sua engenharia do consentimento com as ideias do pensador político W. Lippmann. Este, entendia que havia uma necessidade das massas – formadas por indivíduos não confiáveis – serem direcionadas por uma elite de pensadores que seriam, estes sim, confiáveis para gerir um país de forma “democrática”.

O que escapa ao mergulhador menos atento e ainda impressionado com a mudança de profundidade, é o fato de isto ser exatamente uma subversão da própria democracia. Pois, se esta é exatamente uma forma de governar representando a vontade do povo, alterando as relações de poder historicamente estabelecidas, sua visão oposta seria novamente voltar a um sistema no qual a vontade do povo é governada, novamente, por poucos. Mais uma vez, nenhuma novidade aqui, governos autocráticos são algo tão antigo quanto a organização dos homens em grupos identitários, mas a grande divertida – no sentido militar de divertire: uma movimentação criada para gerar distração – está no uso do conceito de democracia para manter os indivíduos dóceis enquanto vivem sob uma pseudoliberdade: Alienado e impossibilitado de questionar as relações de poder. Um outro avesso, mas desta vez da democracia.

Certamente que uma postura tal como a do paranoico que está sempre sendo perseguido por uma conspiração não é o objetivo aqui. Antes disso, a proposta é utilizar a engenharia reversa para entender como a polarização está impedindo toda uma nação de pensar coletivamente e avançar.

Para isto, precisamos entender, da mesma forma habilidosa que as agências de marketing político o fizeram, quais os mecanismos básicos envolvidos. Conhecer o que nos influencia é um passo a mais em direção à liberdade e ao conhecimento, necessários para voltarmos a pensar de forma autônoma.

Agora sim, é necessário fôlego para começarmos a investigar águas mais profundas.

Em seu livro “Estranhos à nossa Porta” o Sociólogo Zygmunt Baumann discorre sobre os movimentos migratórios em nosso mundo globalizado, identificando na figura do imigrante indesejado, visto pelos habitantes locais dos países de primeiro mundo como um invasor, como o elemento “estranho” para o qual se direcionam todo um conjunto de medos e inseguranças, externalizados em forma de aversão e agressividade. Esta separação propicia a criação de políticas de separação mútua e distanciamento, “com a construção de muros em vez de pontes” (Bauman, 2017).

A facilidade com que este discurso de ódio aos indesejáveis faz eco, independe do grau de instrução dos envolvidos, pois depende, segundo o autor, do grau de autoalienação que se encontram. Neste caso, a insegurança está mais relacionada à instabilidade e incertezas criadas por seu próprio modo de vida, sua condição no mundo atual, do que propriamente pela invasão de imigrantes. Mas, neste turbilhão, o indivíduo acaba sendo pego pelo discurso mais fácil de encarar, tendo em vista ser mais fácil projetar a causa do próprio sofrimento no outro, do que se responsabilizar e contextualizar sua própria condição (Bauman, 2017). Ou seja, ignorar as contingências para seguir uma reação de medo e insegurança, direcionados muitas vezes por discursos políticos que se beneficiam desta posição de separação, ou seja, reforçam sua posição com esta polarização.

Mergulhando um pouco mais nas motivações da polarização, podemos observar a própria tendência a manter reprimidas pressões internas que possam causar conflito ao Ego, projetando seu ódio a um equivalente externo.

Em 1919, Freud escreve O Estranho (Freud, 1919/2010) – no original das Unheimliche – texto no qual define o inquietante, o estranho, como “aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar” (Freud, 1919/2010, p. 331), para depois analisar com maior profundidade suas características. Ou seja, o inquietante, aquilo que nos causa estranhamento assim o é, exatamente por ter sempre algo de muito familiar.

Utilizando-se, neste trabalho, de uma obra da literatura de Hoffmann intitulada “O Homem da Areia” Freud aponta diversos temas neste conto que são causadores do estranhamento característico daquilo que é inquietante/estranho, mas que em sua análise demonstra as raízes comuns a este sentimento de estranhamento com a angústia do complexo infantil de castração, as reminiscências do narcisismo primário e secundário, ao recuo a fases da evolução em que o Eu não se encontrava nitidamente delimitado em relação ao mundo externo e, finalmente, àquilo que Freud chama de retorno do mesmo, que seria uma repetição não intencional em série (Freud, 1919/2010).

É interessante pensar que é em algumas produções culturais que desejos proibidos poderiam ser atuados simbolicamente ou, no mínimo, de forma mais branda para o indivíduo. Mas aqui, o que nos interessa, é o uso instrumental destes conteúdos reprimidos direcionados a um outro, externo, como por exemplo, o homofóbico que está, na verdade, tendo grandes dificuldades de lidar com seus próprios desejos sexuais conflitantes, mas precisa – para se defender destes próprios desejos – direcionar seu ódio para o mundo externo, para outros que representam seu próprio conflito interno.

Novamente para entender o que está na base deste processo, precisamos dar um último mergulho aproveitando o fôlego que ainda resta ao leitor.

Utilizando a expressão grega Kakon para se referir a um “inimigo interior”, Lacan salienta que há na própria constituição do sujeito uma “fatia” indesejada que precisa ser colocada em um local fora da própria consciência, sem acesso ao Ego, por conta da agressividade que pode gerar, sendo assim mantida inconsciente (Lacan, 1998). Este objeto “mal” constitutivo é segregado no interior do próprio psiquismo, o que não o impede de ter efeito sobre o sujeito, efeito este que pode ser visto, à semelhança do que fala Freud em O Estranho, quando o sujeito ataca com sua agressividade no outro aquilo que é seu: Embora inconsciente, extremamente íntimo.

Certo, podemos voltar novamente à superfície para tomar fôlego e enlaçarmos o que foi visto em termos de constituição do próprio sujeito (Freud e Lacan), ou mecanismos de defesa externalizados (Bauman), com a polarização enquanto formação discursiva.

Se pensarmos em termos de Psicologia do Indivíduo podendo ser extrapolada para a Psicologia de grupos, este movimento de “jogar para fora” o objeto de desagrado interno deve ser visto como uma defesa para manter a estabilidade do Ego. Da mesma forma, um grupo, ao apontar no outro lado aquilo que há de mal, ignorando suas mazelas interiores, torna-se um grupo mais coeso. Não é coincidência Freud ter indicado, em Psicologia das Massas e Análise do Ego, que eleger um inimigo externo é uma estratégia extremamente eficiente e muito usada para unificar um grupo, criando assim uma identidade mais coesa e melhor obediência por parte de seus membros.

Isto se parece com algo que estamos observando em nosso cenário político da atualidade brasileira? Acreditamos que sim! Quanto mais polarizado os discursos se encontram, ambos os lados se beneficiam de uma unidade por parte de seus integrantes, menos questionados são e mais forte se transformam a promessas de que se o “inimigo” for derrubado, tudo irá prosperar. O que fica alienado deste raciocínio é exatamente a possibilidade de uma dialetização do discurso, de modo a construir uma solução coletiva aos modos de uma verdadeira democracia. Ora, isto fica absolutamente vedado, pois podemos aqui dizer que a polarização mata o coletivo ao jogar para fora (para o outro lado) aquilo que o grupo (e o indivíduo) não quer ver em si, tornando tudo o que o outro produz um objeto mal, que deve ser ignorado, odiado e extirpado…

Sim, a polarização destrói a possibilidade da solidariedade entre os seres humanos, e o remédio para esta armadilha não é de simples aplicação. Sua aplicação não é simples pois demanda que, ao invés de procurar fora aquilo que odeia, como é a tendência natural que demonstramos, pelo contrário, precisa realizar a difícil – mas não impossível – tarefa de olhar para si e reconhecer o que vai mal, o que precisa ser mudado para, aí sim,  possibilitar que o diálogo entre os polos possa gerar um novo discurso, um novo movimento que seja, este sim, no lugar da separação improdutiva, dê a gênese à integração criadora.

Referências

Bauman, Z. (2017). Estranhos à nossa Porta. Rio de Janeiro: Zahar.

Curtis, A. (Diretor). (2002). O Século do Ego [Filme Cinematográfico].

Freud, S. (1919/2010). O Inquietante. São Paulo: Cia das Letras.

Lacan, J. (1998). A Agressividade em Psicanálise. Em J. Lacan, Escritos (pp. 104-127). Rio de Janeiro: Zahar.

[1] Este artigo foi escrito durante a crise de abastecimento gerada pela greve dos caminhoneiros na última semana de Maio/2018.

* Tema discutido e trabalhado em grupo durante os seminários mensais do grupo de estudo e trabalho em Psicanálise, Structura, em Curitiba.

[2] Vale pesquisar as intervenções feitas por Bernays em jornais para aumentar as vendas de Bacon, intervenções diretas com o público para inserir as mulheres como consumidoras de cigarros e, talvez o melhor exemplo de sua engenharia do consentimento, o direcionamento que fez da opinião pública quando se deu a interferência Norte Americana na Guatemala em 1954.

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