“Ao cantar no escuro, o andarilho nega seu medo, mas nem por isso enxerga mais claro” Freud, 1926.
No espírito acelerado dos tempos atuais, nos quais a informação se tornou moeda acessível, pelo menos em partes, para todos, a mera possibilidade que o caminho da vida possa não ser totalmente banhado pelas luzes do conhecimento é rapidamente descartada como impossibilidade. Negada, nos discursos que permeiam a existência, até as últimas consequências. Mas, seria isto uma possibilidade real? Seria o saber passível de ser alcançado em sua completude, já que estamos banhados virtualmente por um mundo “High Tech”, que atravessa do espaço mais público ao mais íntimo?
Enquanto a ciência sabe que é a dúvida que gera o conhecimento, o cientificismo (sim, são diferentes) tem a certeza de poder explicar tudo; com a genética prometendo mapear e decodificar todos os traços tanto objetivos, quanto subjetivos, com as técnicas de autoajuda criando métodos a serem vendidos como solucionadores para todas as infelicidades da vida – seja ela individual, matrimonial ou corporativa – com a dogmática de religiões pós-modernas se esmerando em não deixar espaço para a dúvida. Resta somente aos historiadores, filósofos e psicanalistas apontarem o que destoa deste discurso que se apresenta tão sedutor ao sujeito.
Quando Freud escreveu a citação que deu início a este texto, em muitos aspectos o mundo era um lugar diferente. Desde então, a sociedade, a medicina e a ciência tiveram seu percurso, no qual a ideia de evolução não deve ser entendida como uma linha constante, nem mesmo como uma tendência garantida, mas apenas como um desejo muito compreensível por parte de todos os envolvidos. Mas, um desejo dado como garantido a ponto de que a própria teoria da evolução darwiniana ser interpretada como demonstração desta tal tendência, mesmo que o autor em sua teoria da adaptação, nada tenha dito sobre um empuxo positivo à evoluir. Neste caso, embora a evolução seja uma questão de opinião, a mudança é, esta sim, inexorável e assustadora. Desta mesma forma, lacunas são preenchidas pelo senso comum para lidar com o medo do futuro, do incerto, daquilo que inevitavelmente é obscuro pela própria característica da existência.
O pensamento corrente pouco se alterou nesse longo espaço de tempo, tendo claramente criado soluções para grandes problemas de saúde, mas teve como efeito colateral (talvez necessário) o desenvolvimento de um discurso que vai de um determinismo extremo a uma tentativa de total holismo, mas que têm como ponto de coincidência a neurose por um saber que seja todo; pela total eliminação de qualquer impossibilidade. “Se você deseja, você consegue”, preferencialmente por si mesmo mas, se não for possível a ciência demonstrará qual a forma ou medicação/intervenção correta para tornar viável aquilo que cada um deseja. Uma imposição do sujeito ao contingente que, se levada a sério, possui ares de megalomania, como um delírio iluminista levado às últimas consequências!
Consequências estas que em partes seriam a construção de uma realidade frágil que procura se sustentar em pós-verdades, em figuras de identificação que enlaçam a plateia com discurso duvidoso, mas hábil em criar a desejada sensação de segurança – mesmo que falsa. Tal manobra demanda enorme esforço e investimento subjetivo para evitar o desconforto do não saber… Um salto de fé, mas sobre terreno suspeito!
Freud reconheceu em sua criação que, embora o movimento em direção ao saber seja necessário, há nele uma inerente miopia. Uma visão parcial, constituinte da própria condição humana e necessária para suportar a delicada ex-istência em meio às reais incertezas causadas por inevitabilidades da vida, como o tempo que consome o corpo, a natureza que volta e meia nos prega peças e as próprias ações do Outro, inesperadas e muitas vezes confusas a nosso olhar. Mas, nem por isto, esta miopia seria um acordo sem falhas em nosso processo civilizatório, pois ao ignorar a existência da falta, tentando preencher todas as lacunas, o sujeito humano se empenha em um esforço fadado a entrar em conflito com a sua própria impossibilidade. Com a impossibilidade que não cessa de testemunhar que por mais luz que se jogue em um espaço, as sombras não deixam de existir, na verdade se fortalecem pela própria ação do ato de iluminar. Onde há luz, há sombra! Assim, ao ignorar este conflito, escancarado por este esboço do Real, o sujeito gera ainda mais sofrimento.
A saída, por mais simples que seja, não se constitui em tarefa fácil, apesar de possível. O mero ato de perceber este engano, de reconhecer sua existência, cria um novo movimento que permite percorrer o caminho do saber, mesmo que este caminho seja sempre parcialmente iluminado. Reconhecer a falta que nos habita pode ser a única forma de lançar alguma luz sobre a realidade de nosso percurso, pois reconhecer o medo do escuro não fará o andarilho enxergar melhor o caminho, mas certamente é uma aposta em saber de sua ignorância, para criar um novo modo de andar, condizente com sua realidade e pronto para resistir aos percalços de sua caminhada.