Houvesse apenas um caminho, todos os caminhantes se encontrariam, mas não saberiam seus nomes, pois suas vozes seriam a mesma. Escrevi esta frase em um cartão para uma pessoa querida, como forma de desejar que, em seu percurso pela vida, encontre um caminho próprio em meio ao turbilhão de informações e exigências. Parece missão simples, mas nada fácil. Mas, além de ilustrar a intenção de um presente festivo, a frase denota que este tema tem circulado em meus pensamentos com certa frequência; seja por conta das questões que ouço na clínica, de minha área de pesquisa acadêmica ou pelo próprio contexto social deste início de década.
Antes de que o leitor pense que o texto será de cunho motivacional, que não se engane, pois ainda me parece mais útil exercitar o pensamento crítico antes de interpretar a frase como um convite para que cada um “seja você mesmo”, um pleonasmo inevitável da obviedade. Por isto, trata-se de um questionamento sobre como a tecnologia que nasce para unir pessoas, acabou se tornando, a nível individual, fonte de sofrimento mental, assim como, a nível social, constante preocupação quanto aos impactos negativos sobre as instituições democráticas que dão suporte à civilização.
Em 2020 George Orwell*, caso vivo, ficaria espantado ao descobrir que seu Big Brother não precisaria espionar ativa e secretamente a vida dos cidadãos, pois todos transmitiriam de forma voluntária sua intimidade e prestariam, sem questionamentos, contas de suas preferências, comportamentos, ideias e ideais, impulsionados pelo desejo algo inconsciente de serem avaliados, homogeneizados e padronizados. O autor de 1984, veria que as instituições de controle e observação seriam obsoletas se comparadas a uma forma muito mais sutil de monitorar, mensurar e direcionar comportamentos sem a necessidade de violência direta, para as quais não houve qualquer imposição de uso, pois todos aderiram solicitamente a seu uso e a alimentam com informações pessoais de bom grado. Orwell certamente se espantaria com o poderio levantado por Mark Zuckerberg, pois aqui já deve estar claro que estamos falando das mídias sociais.
Para jogar alguma luz àquilo que se tornou normal a ponto de não ser mais percebido, é importante entender que as mídias sociais não são um serviço que você utiliza sem custo material. Este custo pode até não ser de moedas que saem de sua conta ao logar em seu perfil, mas é capitalizado em produto ainda mais valioso, ou seja, você paga com sua atenção que será vendida a anunciantes, assim como também paga com seus comportamentos, preferências e padrões de usuário, base de dados a ser utilizada por empresas como a Cambridge Analytica para moldar anúncios e campanhas feitas com precisão, para que você não resista, seja a comprar um produto, ou para alterar intenções de voto de parcelas significativas da população. É o bom e velho ganha-ganha. Claro, para a empresa que pode lucrar tanto com a política de teclado, como com política de Estado.
Mas, esta ainda não é a jogada de mestre desta tecnologia que faz o Big Brother de Orwell parecer um automóvel dos anos 60, barulhento e pouco eficiente, pois o grande salto está no poder de aprisionamento subjetivo ofertado pelas mídias sociais. Perceba o leitor que este aprisionamento não é imposto, pois não existe, como no romance de Orwell, um Partido que obriga o assujeitamento de todos à sua necessidade de espionar e controlar. O verbo aqui escolhido foi ofertar, porquanto trata-se de oferecer as condições, a plataforma ideal para que a captura aconteça com a solícita participação de todos que, sabendo ou não, doam-se de corpo e corpo aos olhos de cada pequeno (e grande) outro, em via escópica de duas mãos, criando uma constante relação de olhar e ser olhado, desejar e ser desejado a cada deslizada de dedos pela tela. Entrega-se a chave da prisão em troca de likes, retweets e seguidores.
Jacques-Alain Miller** comenta que é o desejo de ser avaliado que dá aos avaliadores poder sobre ao avaliado, aos moldes dos vampiros da Ficção, é necessário convidá-los a entrar. Porém, ao desejar a constante avaliação, dá-se aos avaliadores o poder de extinguir quaisquer possíveis traços diferenciais do sujeito, criando ideais cada vez mais padronizados de felicidade, sofrimento, sexualidade etc. O autor escrevia em 2003, muito antes do advento dos smartphones (que ocorreria por volta de 2007), no contexto das avaliações de classes profissionais; mas, a estrutura das relações entre o sujeito e os ideais culturais, que Miller levanta neste texto, é aplicável à realidade que estamos aqui discutindo, pois indica o desejo neurótico de ser constantemente aprovado, chancelado pelo amor do Outro***. O que muda, é que a figura do avaliador seria substituída pelo coletivo que dialeticamente avalia, enquanto é também avaliado e direcionado não mais pelas instituições, mas pelos algoritmos que definem o funcionamento das plataformas de usuários.
Mas, não deixai toda esperança, ó vós que logais. Houvesse apenas um caminho, todos os caminhantes se encontrariam, mas se perceberiam sem voz, pois, a angústia de descobrir-se sem nome próprio, andando pelos algoritmos a depender dos likes e visualizações daqueles que tropeçam pelas redes, tem dado espaço a movimentos no sentido de controlar a ferramenta que pretendeu conquistar os artesãos (Mark que se contente). É o próprio mal-estar que nos leva, cada meia-volta da História, a questionar a própria civilização e as trocas que esta exige de seus civilizados indivíduos pois, aparentemente, é preciso perder a liberdade para poder lutar pela mesma. Neste sentido, resta apostar no fracasso desta prisão sem muros criada pelo (mal) uso das redes, que se expressa em forma de sofrimento como o medo de estar sempre perdendo algo (Fear of Missing Out: FOMO). Fracasso que possibilita que sejam criados novos caminhos, novos nomes, novas formas de se caminhar, com passos cada vez menos (algo)ritmados, de forma que seja possível tomar posse dos próprios desejos, sem ignorar a responsabilidade que isto implica. Afinal de contas, é o sofrimento de estar a-sujeitado que possibilita que possa fazer-se um sujeito.
*George Orwell (1903-1950), escritor, autor do romance distópico 1984.
** Você quer mesmo ser Avaliado? (Miller, J-A., 2003)
***A noção lacaniana de Outro – “grande outro” – trata-se de uma realidade discursiva, pertencente ao registro do Simbólico na qual se supõe a participação de um outro – no sentido de alteridade – mas que não se identifica totalmente a um sujeito.