As duas faces da superação: Seus treinos são movidos por um Ego Forte, ou Frágil?

Texto escrito para o Blog especializado em CrossFit: Hugo Cross e para a Kaluanã CrossFit

Vamos falar sobre CrossFit?!

Sim, mas tam

 

Aqueles mais curiosos sobre a História desta modalidade já devem ter descoberto que ela é permeada por um saudável clima de contracultura, seja pela mudança de foco do estático para o funcional, do saudável no lugar do mercadológico, ações contra a indústria de alimentos e, muito comentado mas pouco notado, pela cultura de comunidade em uma sociedade que nos empurra cada vez mais para o individualismo ou pela motivação à superar-se.

 

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Seja de forma pensada por já estar procurando um estilo de vida fora do mainstream, ou mesmo de forma despercebida simplesmente quando buscava os melhores resultados físicos, estes fatores fazem com que a grande maioria das pessoas que entram em um box de crossfit, criam uma paixão duradoura pela modalidade e sua cultura. Existem vários fatores muito positivos para isto, que certamente causam um bom impacto sobre a qualidade de vida de quem dá o primeiro passo para entrar em um box. Podemos falar sobre estes fatores em outra oportunidade, mas aqui vamos apontar para as duas faces de um deles; das quais uma delas precisa ser desmascarada: As duas faces da superação!

A ideia de superar seus limites é algo a que todos almejam em um bom treino, sentir-se presente fazendo seu melhor, perceber-se evoluindo passo-a-passo. E sim, isto pode ser extremamente produtivo como forma de dar vazão à excessos mentais que o dia-a-dia produz, motivação interna para treinar melhor e até mesmo a alta intensidade necessária para os bons resultados fisiológicos, funcionais e estéticos que todos já conhecem. Por outro lado, quem já entrou em um box de Crossfit sabe que é comum ouvir, ou ler a frase, que diz em letras garrafais: Deixe seu Ego de fora!

Esta frase foi criada exatamente por conta desta facilidade que a modalidade oferece para testar seus limites, mas por conta, também, da tênue linha que existe entre testar-se dentro de uma fronteira razoável e fazer mais do que se está fisicamente preparado no momento. O que podemos chamar de face ruim da superação. A primeira “face” leva aos bons resultados citados acima, já a segunda “face” pode levar a indesejadas lesões e uma vida curta na modalidade que até aquele momento estava lhe fazendo bem.

A imagem é conhecida por praticantes e temida por coaches. Aquele aluno, que ignora totalmente as indicações do Coach para diminuir a carga, ou adaptar um movimento, ou até pior, aquele que desiste no começo dos treinos por sentir-se frustrado por ter que adaptar os treinos. Adaptações (ou escalonamentos = scalling) que o Coach sugere, não por mal, mas porque sabe que estas alterações no formato original do treino (como prescrito, ou RX no vernáculo crossfiteiro) são a base da metodologia, e que sem elas, não há evolução. O resultado comum da falta destas adaptações acaba sendo, em geral, do praticante executando o treino com movimentos sofríveis, se colocando em risco sem nem mesmo perceber isto.

E, sim, não se enganem, pois em bons espaços de treino, os coaches vão insistir para que o aluno diminua a carga, ou faça um movimento mais simples que domina melhor, mas em alguns casos a negativa por parte do empolgado aluno é taxativa. Já presenciei a desconfortável situação do Coach precisar pedir para o aluno admitir que estava assumindo um risco desnecessário, apesar da instrução contrária de um profissional especializado.

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Esta atitude parece ilógica para você? E, é! Mas, vale lembrar que apenas uma pequena parcela de nossa mente opera de forma consciente e racional, sendo que muito do que nos habita passa despercebido e pode fugir à lógica. Se somarmos a isto o contexto no qual vivemos, de uma sociedade que supervaloriza o sucesso acima de tudo e ensina que deve-se mostrar uma imagem forte e invulnerável frente a todos, fica fácil entender que não é um problema de raciocínio lógico, nem uma patologia individual da qual devemos culpar cada um que se recusa a adaptar um treino, mas sim algo que escapa à esta lógica consciente.

Pois, conscientemente, todos sabemos que é preciso respeitar a existência de uma curva de aprendizagem, na qual ninguém começa executando um movimento complexo pelo seu final… Novamente, óbvio, não é verdade? Mas, existe uma armadilha mental, resultante de um conflito interno e inconsciente que gera uma dissonância entre este saber lógico e o fazer/agir na hora do treino. Como um pequeno curto circuito após o 3-2-1…

Vale a pena entendermos melhor como isto funciona! Pois espero que até este ponto esteja claro que o que o assunto de nossa conversa não é algo que acontece apenas dentro do Box, mas sim que permeia e certamente atrapalha toda nossa vida. Como sempre acreditei que o Crossfit vai além de puramente um movimento físico, ele nos surpreende com mais uma possibilidade de atravessar um mal-estar da cultura vigente, mas para isto, é preciso entender melhor o que acontece, digamos, por baixo dos panos.

Para isto precisamos falar um pouco mais de Psicologia a começar pela tão famosa frase, que nos incita a deixarmos nosso Ego do lado de fora do box; ao que alerto, geraria alguns resultados, no mínimo, catastróficos. Pois, o Ego é uma de nossas instâncias psíquicas indispensáveis para que possamos interagir com o mundo. Em linhas gerais, ele engloba nossa noção de eu, de nossos papéis sociais e daquilo que pensamos que as pessoas esperam de nós. Sem o Ego a relação entre mundo interno (mente, pensamentos, instintos, etc.) e o mundo externo, seria impossível. Em paralelo à noção de Ego, o conceito de Narcisismo, segundo a psicanálise, não adquire um tom pejorativo, mas sim denota a relação de construção do Ego, e os investimentos necessários para que seja construída uma imagem de Eu, com a qual atuamos diante da sociedade. O Narcisismo é parte necessária ao desenvolvimento do Ego e faz uma relação importante entre as ligações que fazemos com as outras pessoas mas, se pensarmos em termos de quantidade, uma personalidade narcísica, pode “se atrapalhar” no sentido de tornar o foco no outro algo que extrapola o equilíbrio.  Dito isto, o que provavelmente se quer dizer ao culpar o Ego pela “face malvada” do desafio, seria a alusão a uma personalidade extremamente narcísica e a um ego que, embora cause a impressão enganosa de se amar extremamente (como no mito de Narciso que se afoga ao se fascinar profundamente por sua imagem em um lago), na verdade nos fala de um Ego frágil, que precisa da constante aprovação de seus pares para poder entender-se amado.

Claro, todos precisamos disto em certa medida, mas nos casos de uma personalidade narcísica, estamos falando de uma necessidade tão premente que acaba direcionando as ações do sujeito até mesmo para atitudes que o possam colocar em risco, ou prejudicar sua relação com os outros. Portanto, se fôssemos escrever a frase das paredes de acordo com a Psicanálise, ela seria algo como: Aqui dentro, controle seu narcisismo!

Certo, até aqui já sabemos que estamos falando de um narcisismo em quantidade que gera uma sobrecarga, uma sobra de quantidade que beira a onipotência (pelo menos à ilusão dela). Este excesso gera algo que pode ser chamado de uma exterioridade nesta relação consigo mesmo, ou seja, a necessidade de ser visto e definido pelo olhar do outro, de forma constante, urgente!

Aí mora o grande problema, pois esta excessiva necessidade de ser “bem” visto pelo outro, como alguém forte, capaz, invencível mesmo que apenas em sua fantasia, entra em conflito com um detalhe do desafio, que seria a “face boa”, o SE do desafie-se. Mas, com toda esta pressão cultural e interna (inconsciente) para que o foco esteja em como somos vistos pelo outro, o SE do desafiar-se sobre uma espécie de fading out (desaparecimento), pois a visão de si mesmo pode ficar amalgamada à como o outro nos vê, e que de preferência nos veja como alguém forte, invulnerável.

Na prática, isto faz com que se esqueça que é preciso estar vulnerável para aprender. Não existe outra forma! E, na verdade, as pessoas que mais se desenvolvem, seja no crossfit ou em suas áreas profissionais, são aquelas com grande capacidade para lidar com este período de frustração e vulnerabilidade que a aprendizagem exige. E que continuará exigindo, mesmo com a evolução nos treinos, tendo em vista que a evolução é constante quando o movimento é constante. Aprendemos sempre e sempre estamos vulneráveis, mesmo com todo esforço para provar o contrário.

Outro “equívoco interno” gerado pela exteriorização (aquela do narcisismo em excesso), é a identificação da vulnerabilidade com fraqueza. O que novamente parece óbvio, pois se existe a necessidade de aprovação constante do outro, existe o desejo de mostrar-se como alguém forte, sempre forte! Mas, será que isto passaria pelo crivo da lógica?  Ora, chegar em um local cheio de pessoas, admitir que tem falhas e que está lutando para melhorá-las, lidar com a dificuldade de aprender ou com o tempo necessário para que o condicionamento físico aconteça, dificilmente vai ser confundido com outra coisa além de pura coragem!

Ok, agora vamos tentar ligar os pontos, ou agrupar os movimentos, hora de tentarmos um Full Snatch depois de entendermos as partes separadas: É fácil perceber o tamanho do autoengano que este conflito inconsciente cria, pois ao mesmo tempo que identifica erroneamente como coragem um comportamento que na verdade provém do medo de como o outro nos vê (não poder admitir que tem limitações para não ser visto como alguém que está aprendendo e não perder o “amor” do outro), também nos leva a identificar com fraqueza o estado de se mostrar aprendiz, para de fato aprender e evoluir.

Na prática de um treino de Crossfit, ao cair nestas duas armadilhas, o praticante coloca à frente de sua segurança e do bom desenvolvimento de seus treinos, a necessidade de ser visto pelos outros como alguém que escreveu RX no quadro e se mostrou muito “forte”.

Seria realmente uma prova de força não poder admitir que está em uma escalada para tornar-se melhor, e que esta própria escalada diz que precisará adaptar os treinos e cargas até estar pronto para elas? A Psicanálise nos diz que é exatamente o contrário, pois somente um Ego forte pode admitir suas limitações sem se importar (tanto) em como está sendo visto pelo resto do grupo.

Como nos mostra a pesquisadora da área social Brené Brown: “Longe de ser um escudo eficaz, a ilusão de invulnerabilidade desencoraja a reação que teria fornecido uma proteção genuína”. Qual seria esta proteção? Fazer um bom treino, bem executado, dentro de seus limites sem uma apresentação desesperada de movimentos duvidosos e arriscados, e mais importante, contar com a relação com o outro, uma relação autêntica e genuína baseada na troca, que a comunidade de um box possibilita e está pronta para isto. Corre-se o risco de perder tudo isto pela simples necessidade de provar para os outros que é mais forte, invulnerável, mas também inacessível, criando uma espécie de relação asséptico, parcial com o grupo; pois compartilhar somente as alegrias, ou fingir que a vida é somente feita dos posts de nossos PRs no instagram, não é realmente compartilhar muita coisa.

Portanto, quando bater aquela vontade, que vem de algum lugar que não se consegue perceber no momento, de não adaptar aquele wod do CrossFit Open com movimentos que você ainda não domina, aquela vergonha de fazer menos repetições que os mais experientes ou aquela vontade de aumentar as cargas mesmo quando o Coach disse para diminuir; lembre-se: forte é aquele que admite suas fraquezas para si mesmo e luta para mudar aquilo que pode, pois como disse em um de seus discursos Theodore Roosevelt: “o crédito pertence àqueles que estão por INTEIRO na arena da vida”, e estar por inteiro é ser forte para compartilhar e aceitar suas fraquezas, pois somente assim, na melhor das hipóteses, seremos mais fortes, como indivíduo e como comunidade.

 

Daniel R. Branco

Mestre em Psicologia, Psicanalista e Psicólogo esportivo. CrossFit Level 2 / CrossFit weightlifting / Proprietário da Kaluanã CrossFit em Curitiba.

Mindfulness: Dicas para iniciar a prática em casa e obter os benefícios para sua Atenção e Foco

Mindfulness: Dicas para iniciar a prática em casa e obter os benefícios para sua Atenção e Foco?

Veja estas dicas no vídeo:

 

Vídeo Completo: https://www.youtube.com/watch?v=AAsoM4v13Ww

 

Instagram: @branco_daniel

Lembrando que Mindfulness não é relaxamento, mas este pode ser um de seus resultados. Por isto, sentar-se de forma “solta” na cadeira, ou em posição deitada, vai gerar um relaxamento que dificulta estar presente no momento, perceber a respiração e os estímulos internos e externos… Esta presença sim, é o objetivo da Mindfulness.

Assista o vídeo e dê os primeiros passos, em qualquer lugar, com apenas 5 minutos.

 

Esteja presente: desconecte-se!

Você tem dificuldades para organizar suas tarefas diárias? Dificuldades para definir prioridades, ou para manter a atenção por períodos mais longos em uma tarefa?

Se você respondeu que sim, está entre a grande maioria da população que vive conectada. Pesquisadores recentemente relacionaram a atividade de multitarefas diretamente com a dificuldade de focar a atenção e definir prioridades para suas tarefas do dia-a-dia. Multitarefas é a contemporânea necessidade de fazer várias atividades ao mesmo tempo, como estar no trabalho respondendo ao WhatsApp, acompanhando o instagram, checando os e-mails pessoal e do trabalho e ainda com mais duas ou três planilhas de trabalho abertas. A melhor representação, são aquelas várias janelas e aplicativos abertas em seu desktop, ou celular ao mesmo tempo.

A informação valiosa que estes pesquisadores descobriram, foi que a atividade multitarefas “desprograma um aplicativo natural” que nos auxilia tanto a saber o que é prioridade, quanto a manter a atenção focada nesta tarefa. Esta “desprogramação” tem efeitos sérios na qualidade de vida das pessoas, pois atrapalha desde o autogerenciamento (organizar sua vida, seus horários, suas tarefas) até a relação (presencial) com outras pessoas, pois é necessário ser capaz de focar no que a pessoa está falando, em sua tonalidade de voz e expressão facial para poder gerar uma relação empática e agradável. Na falta disto uma mera conversa de 30 segundos é quase uma tortura para se manter atento à outra pessoa… soa familiar?!

A boa notícia é que, de alguma forma, a atividade multitarefas gera um melhor desempenho para responder bem a treinamentos em focar a atenção. Exatamente isto! No estudo, usaram sessões diárias de mindfulness (atenção plena) e os resultados foram promissores. Os participantes que tinham uma rotina com grandes períodos de atenção à multitarefas (talvez o padrão geral na atualidade), tinham os piores resultados em atenção focada, mas também demonstraram uma melhora mais acelerada em sua atenção focada depois de práticas de mindfulness.

Portanto, se você tem dificuldade em definir suas prioridades, em executar uma tarefa complexa com qualidade, dificuldade em estudar ou mesmo em manter uma conversa atenta com outra pessoa, a prática de mindfulness de forma constante, como indicam as pesquisas, trará grandes benefícios para sua saúde mental. Existe um benefício também em procurar se desconectar por períodos específicos, como por exemplo, se distanciar do celular e de outras “janelas” que possam atrair sua atenção para poder focar na execução de um trabalho de forma mais integral, ou mesmo simplesmente fazer o exercício de ler um livro sem qualquer interferência… Esteja presente no que estiver fazendo.

Já pensou em desligar os celulares quando estiver em uma situação social e dedicar sua atenção às pessoas que estão presentes? Sim, é possível, antes dos celulares as pessoas sobreviviam desta forma…

Porém, os resultados desta pesquisa deixam uma outra questão no ar: Será que a forma como utilizamos a tecnologia na atualidade não contribuiu para a enxurrada de diagnósticos de déficit de atenção nos últimos anos? Aguardem os próximos capítulos.

Portanto, desconecte-se da rede e conecte-se com você e com seus semelhantes. Seu cérebro agradece.

 

 

 

 

Referências:

 

1) E. Ophir et al., “Cognitive Control in Multi-taskers”. 2009.
2) Gorman e Gree, “Short-therm Mindfulness intervention reduces the negative attentional effects associated with heavy media multitasking” 2016.
3) Mrazek et al. “Mindfulness Training improves working memory capacity and GRE performance while reducing mind wandering”, 2013.

Os Games e o Virtual: O que está em Jogo?

Recentemente tenho recebido algumas perguntas em relação a jogos de videogame e computador com os quais crianças, adolescentes e mesmo adultos vêm dedicando cada vez maior quantidade de tempo. Por esta razão, e também por acreditar que seja um fenômeno importante, tentarei em algumas linhas abordar o tema.

Os jogos e sua realidade hoje:

De acordo com a União internacional de telecomunicações[1] no início de 2010 estimou-se que mais de 479 milhões de pessoas em todo o mundo utilizavam algum serviço de acesso a dados da internet, o que equivale a um aumento de 445% em relação ao ano 2000[2]. No início de 2010 os jogos online tomaram a posição dos correios eletrônicos como segunda utilização mais comum deste contingente, ficando atrás apenas dos portais de relacionamento – segundo pesquisa publicada pela Nielsen Company[3].

As novidades na área dos jogos têm sido constantes, criam-se jogos cada vez mais realistas em termos de imagem e som, nos quais o jogador deve interagir com uma quantidade enorme de recursos de jogabilidade, culminando mais recentemente em games com leitores de movimento corporal, dispensando em parte – ou totalmente – o uso de controles e botões.

Um dos segmentos de maior crescimento nesta indústria são os jogos online para grandes massas de jogadores, conhecidos como MMOMassively Multiplayer Online – sendo World of Warcraft o jogo mais popular com cerca de 12 milhões de assinantes em todo o mundo. Diferente dos jogos tradicionais, os MMOs possibilitam que centenas de jogadores se conectem através de um servidor central para jogarem ao mesmo tempo, sem um destino pré-definido e no mesmo “mundo virtual”.

Pode-se falar em mundos virtuais, pois estes são contextualizados de acordo com cada jogo, tendo sua própria economia, raças, profissões, sistema de transportes, redes sociais, uma história própria, além de várias outras possibilidades que os tornam atrativos de jogar e cada vez mais complexos.
Embora os consoles de videogame estejam convergindo para os jogos online, em sua maioria estes ainda precisam de um computador ligado à internet como principal suporte. Alguns destes jogos possibilitam reunir centenas de jogadores em uma mesma rodada.

Assim, podemos pensar em algumas ideias com relação a estes jogos, nossa cultura e os jogadores como indivíduos.

 Por que jogamos e o que está em jogo?

Sempre que há uma grande adesão cultural em relação a alguma atividade, podemos voltar nossa atenção para o que nesta atividade “fisga” o indivíduo, ou quais processos psíquicos estão ali envolvidos. Com os jogos não seria diferente, tendo em vista a grande aceitação do público fica claro que não se trata de algo de menor importância.

O que se tem notado é que entre uma enorme variedade de títulos que esta milionária indústria tem criado, os jogos mais vendidos envolvem algum tipo de enfrentamento de inimigos, seja de forma mais realista e bélica, ou mais infantil. Portanto, lendo o jogo como um texto, é possível dizer que estes jogos têm em seu pano de fundo alguma relação com a agressividade. Alguns utilizam esta ideia de forma direta, como os jogos de guerra, enquanto outros o fazem de forma lúdica, deixando a agressividade fluir para figuras de monstrinhos – por exemplo, nas tartarugas mal humoradas do jogo Mario.

Isto indicaria ser necessário um ambiente virtual para dar vazão à alguma agressividade? Talvez os processos envolvidos não sejam tão simples assim, mas em seu famoso ensaio O Mal Estar na Civilização (1930), o fundador da Psicanálise nos permite traçar algumas possibilidades.

Neste texto de 1930 Freud discorre sobre a dicotomia da aquisição/manutenção da felicidade e do processo civilizatório, considerando que a mesma civilização que nasceu da necessidade de evitar as fontes de sofrimento, acaba sendo responsável pela frustração do indivíduo. O processo civilizatório tem o intuito de “proteger os homens contra a natureza e ajustar os seus relacionamentos mútuos” (FREUD, 1930), ou seja, proteger a sociedade contra os processos pulsionais (ou instintos) e regular nossos relacionamentos sociais, a fim de que estes não estejam sujeitos a uma vontade, ou desejo arbitrário. Porém, esta própria civilização diminui a liberdade, já que o próprio conceito exige restrições e a justiça exige que ninguém fuja a estas restrições, que ninguém fuja à renúncia aos instintos; é exatamente esta renúncia um dos fatores de frustração, sendo que pressupõe a não satisfação de pulsões poderosas, gerando uma frustração social.

Dentre as renúncias exigidas pela vida social, a satisfação sexual pode ser destacada em paralelo à agressividade. A necessidade de uma adaptação social e bom relacionamento – pelo menos com o grupo próximo – exigiu do Homem um grande controle das pulsões agressivas. Em vista das necessidades impostas pelo princípio do prazer, pela agressividade afigurável no homem, o indivíduo encontra-se dividido, descontente em um limbo entre suas vontades de satisfação individual e as exigências sociais impostas pela civilização.

Desta forma, podemos pensar em vários exemplos de atividades humanas nas quais a agressividade, impossibilitada da passagem ao ato, tem um destino mais aceitável pelas imposições da civilização. Talvez, uma parte da grande atração destes jogos seja o fato de possibilitarem que uma violência simulada (ou real no caso de prejudicar outros jogadores) seja praticada sem que isto seja um atentado às leis e regras sociais.

Se esta é uma das motivações para o ato de jogar, então poder-se-ia concluir que não deveria haver preocupação quanto a isto? Acredito que não seja tão simples assim.

Algumas pesquisas mostram que adolescentes passam aproximadamente 14 horas por semana envolvidos em algum tipo de jogo eletrônico. Porém, a experiência na clínica com adolescentes indica que este número é provavelmente maior; mesmo não falando de casos específicos onde o tratamento estaria ligado ao jogo, mas sim de adolescentes que têm estes jogos apenas como uma atividade comum em seu dia-a-dia superando duas horas diárias por larga margem.

Como toda atividade constante e regularmente praticada traz algum efeito sobre aquele que a pratica, podemos pensar em quais efeitos, ou quais repercussões, para o Sujeito que estes jogos podem facilitar. Lembrando que, embora o número de adultos que se dedicam a estes jogos seja significativo, o grande público desta atividade está ainda em fases de formação, de desenvolvimento e, portanto, mais vulneráveis em seu processo de tornar-se indivíduo.

Alguns autores, entre eles o filósofo alemão Christoph Türcke, defendem que a inundação de estímulos provocados pela torrente de imagens destas mídias exercita algo que pode ser chamado de uma “distração concentrada”. Embora o termo seja ambíguo, á na verdade cheio de sentido, pois denota que enquanto uma imagem singular promoveria a atenção focada, bilhões destas imagens fazem o contrário mantendo o indivíduo concentrado neste turbilhão, sendo porém mantido distraído de todo o resto por longo período.

Portanto, o grande “treinamento” facilitado por estes longos períodos resultariam, como facilmente se poderia pensar, não em uma grande capacidade de concentração e processamento, mas sim em uma incapacitação para o pensamento complexo e a reflexão, corroborando a preocupação do sociólogo Zigmunt Bauman – autor do livro Modernidade Líquida – quando diz que na era da informação arriscamos um neo-analfabetismo.

Porém, tão ou mais preocupante, é que esta incapacitação ao ato de refletir pode estar colaborando para um afastamento cada vez maior do indivíduo da sensibilidade e da possibilidade para enfrentar suas questões e frustrações. Parafraseando o C. Türcke: “A repetição de imagens que vivemos é uma forma de não lidar com a dor, com o que achamos que é terrível”. Um efeito comparado ao das drogas em seus usuários.

Paralelamente, algo que a mídia tem frequentemente demonstrado quando fala de jogos, é um grande medo em relação à possibilidade de fuga da realidade por parte do jogador, ou o medo de que os jovens comecem a repetir os comportamentos violentos dos jogos com seus colegas. Contudo, isto não tem se mostrado verdade e apenas uma pequena parcela corre este risco em função de processos patológicos que dificultariam estas pessoas a diferenciarem aquilo que é fantasioso (o jogo) de sua vida real. Nestes casos a patologia não está relacionada ao jogo, mas sim a uma estrutura prévia do indivíduo.

A grande violência dos jogos não está neste tipo de risco, mas sim na alienação que o jogo pode causar e nas dificuldades de desenvolvimento de algumas atividades mentais, principalmente na capacidade de se relacionar.

Uma atividade de lazer, de distração periódica, é certamente bem vinda e necessária, mas entendo que várias horas de prática diária devem nos chamar a atenção para o que, literalmente, está em jogo. Os jogos e a internet não são o problema, mas sim a forma sem limites como estes são utilizados e sua aceitação incondicional por parte de nossa sociedade.


[1] Agência da ONU especializada em tecnologia de comunicações (http://www.itu.int/en/pages/default.aspx)

[2] Estes dados levam em conta apenas os serviços de banda larga, considerando-se que o número possa ser muito maior se computadas as conexões por telefone, ainda existentes em países menos desenvolvidos.

[3] Empresa especializada em estatísticas de utilização da internet e meios virtuais (http://blog.nielsen.com/nielsenwire/)

O Sucesso de Harry Potter e as Histórias Infantis

Com o final da história do pequeno bruxo, que se estendeu por mais de uma década, fica claro o grande sucesso desta trama. Sucesso decorrente da atenção não apenas por parte das crianças, mas também de diferentes gerações. Enquanto adultos acompanharam o enredo com interesse elevado, viram os personagens crescerem acompanhados de boa parte de sua plateia.

Outro fator que destaca a importância da série foi a forma como esta ganhou projeção mundial. Pois, diferente da grande maioria das produções atuais, seu reconhecimento público não resultou inicialmente do investimento de grandes editoras e estúdios, mas sim, conquistou sua projeção pelas vozes de seus pequenos leitores, para só depois ganhar o mundo através dos enormes mecanismos da indústria do entretenimento. E tudo isto, partindo de uma geração acusada de ser desinteressada pela leitura.

Somando estes fatores – tempo decorrido de seu início, um romance que desperta o interesse pela leitura e o reconhecimento partindo do público, além de vários outros que poderiam ser citados – fica a sensação de que há realmente algo nesta história que cativou o coletivo de forma singular.

Não é de hoje que histórias infantis ganham grande projeção entre os pequenos, sendo que alguns clássicos perduram atravessando gerações por séculos, inicialmente pela transmissão oral, para só depois a escrita, até alcançarem as diferentes mídias de hoje. Alguns exemplos são os famosos contos de Charles Perrault e dos irmãos Grimm.

Diante disto, podemos levantar o questionamento: o que tem estas histórias que fascinam tanto, levando algumas a continuar por séculos entre as prediletas das crianças?

As histórias maravilhosas:

 

Não pretendendo uma resposta definitiva, mas sim uma discussão sobre o tema, podemos pensar no que estas histórias integram à vida psíquica daqueles que tanto deslumbram.

Historicamente, as histórias infantis surgiram a partir dos contos de tradição oral camponesa do século XVIII – que a princípio não eram direcionados especificamente à criança[1] – mas foi apenas no séc. XIX, com a gênese da família nuclear e a atenção à infância como fase de desenvolvimento, que houve a infantilização destas narrativas tradicionais sendo então transformadas nos atuais contos de fadas.

Por definição, um conto de fadas é uma história que apresenta elementos extraordinários, surpreendentes, encantadores, não precisando necessariamente haver fadas em seu contexto. Neste tipo de conto o elemento fantástico é essencial por garantir que se trata de outra dimensão, de outro mundo, com possibilidades e lógicas diferentes do real.

Alguns destes contos são, reconhecidamente, valiosos instrumentos para um desenvolvimento psíquico saudável. Como a criança está em processo de delimitação das fronteiras entre o real e o imaginário, entre o mundo externo e o pensamento –fronteiras estabelecidas em parte pela repressão das representações inconscientes – todas as possibilidades da linguagem lhe interessam para compor o repertório imaginário de que ela necessita para “elaborar os enigmas do mundo e de desejos” (Parafraseando a Psicanalista Maria Rita Kehl).

Em seu livro, fadas no divã, Diana e Mário Corso indicam que a forma psíquica do uso dos contos de fadas pelas crianças, é similar à forma e função em que o mito era usado em sociedades antigas, ou seja, possibilitando ao indivíduo que fantasiosamente adentre a trama e encaixe suas questões nos esquemas interpretativos disponíveis para o mito (neste caso o conto de fadas). De forma mais clara, podemos dizer que o indivíduo seleciona fragmentos, unindo-os a sua própria maneira, de forma a construir uma explicação para assuntos que os questionam.

Os mitos, assim como os contos de fada, estão repletos de material inconsciente, reprimido, subjacente em suas tramas e personagens. As mensagens dos contos de fadas são transmitidas desde a mente consciente até a inconsciente, e como lidam com problemas humanos universais, estas histórias falam ao ego em germinação, encorajando seu desenvolvimento enquanto também aliviam tensões inconscientes, ou seja, demonstram caminhos pelos quais os desejos Inconscientes podem ser parcialmente satisfeitos com o mínimo de conflito entre as requisições do Eu[2] e da consciência moral (Superego), ambos ainda em desenvolvimento.

Para que possa superar as dificuldades psicológicas advindas do crescimento – como a superação das decepções narcísicas, dilemas edípicos, rivalidades fraternas, a sexualidade, o abandono de dependências infantis e, finalmente, sua individualidade – a criança precisa elaborar estes conflitos inconscientes. Este trabalho de elaboração não pode ser atingido de forma racional, mas familiarizando-se com este eu inconsciente, através de devaneios prolongados, fantasiando sobre elementos adequados da história em resposta às pressões inconscientes.

Harry Potter:

        

Uma obra extensa como esta dá margem a uma quantidade sem fim de possibilidades interpretativas. Tendo isto em vista, não pretendo desconstruir a obra em um texto de poucas palavras, mas sim levantar algumas possibilidades de reflexão sobre alguns temas comuns às histórias clássicas que se mostram presentes na história do bruxinho.

Embora alguns críticos tenham sugerido que o romance de J.K. Rowling pudesse induzir seus leitores a ater-se à fantasia, ficando “presos” a ela, vimos acima que isto não é verdade, pois o fantasiar e a ficção fazem parte de certas etapas do desenvolvimento do Sujeito e podem, se bem conduzidos, auxiliar na elaboração de alguns conflitos típicos da infância ou, como neste caso, da adolescência.

A história do bruxinho trata de temas comuns a todos adolescentes e pré-adolescentes, como a amizade, coragem, ambição, assim como dilemas éticos e sociais que permeiam o mundo dos bruxos – como, por exemplo, a discriminação dos “trouxas” e as constantes escolhas que Harry tem que fazer entre o caminho mais fácil, e o certo.

Outro fator são os heróis imperfeitos, e o caráter complexo de alguns, levantando a necessidade de maiores ponderações por parte do protagonista. Pois mesmo Dumbledore, uma pessoa extraordinária, se revela portador de falhas e de uma triste história em sua juventude, afastando sua imagem de ideal inalcançável para algo mais próximo do real; não muito diferente do que acontece com as figuras paterna e materna conforme a criança cresce. Julgamentos precipitados também são induzidos pelo caráter de Severus Snape, que ao final se revela o grande protetor de Potter e um homem apaixonado e devotado.

Parece-me bastante nítida a relação entre a figura de Voldemort e um resquício de representação da figura paterna – diluída na história entre vários personagens – com a qual Potter precisa acertar algumas contas. Voldemort assassinou os pais de Harry, mas é uma presença constante em sua vida, e divide com ele várias coincidências (como a varinha e a capacidade de falar com ofídios) culminando na necessidade de que algo em Harry seja eliminado para que o mal pereça. Isto me parece uma facilitação para lidar com os sentimentos ambíguos da criança em relação ao pai (conflitos edípicos), pois esta diluição em várias figuras paternas sendo vários deles bons, protetores, amorosos e corretos e um oposto e maligno que deve ser eliminado. Este tipo de conflito é uma constante nas interpretações dos contos clássicos feitas por Bruno Bettelheim em seu livro A Psicanálise dos Contos de Fadas.

Embora a história de Harry seja ainda recente comparada com alguns clássicos, parece reunir alguns temas universais, além de uma trama interessante e dinâmica, pois como já nos disse Maria Rita Kehl: “A sobrevivência dos contos reside em sua capacidade de simbolizar e resolver conflitos psíquicos” e, para isto, os contos de Rowling parecem demonstrar alguma capacidade. Mas, só o tempo poderá dizer se a saga do pequeno bruxo perdurará por gerações.


[1] A história original da Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, não tinha um final nada parecido com a versão de Perrault que conhecemos, pois o lobo devorava a todos, inclusive a protagonista.

[2] Eu ou Ego: Polo defensivo da personalidade, encarregado dos interesses da totalidade do sujeito, mas não totalmente autônomo.