A Arte de Criar Pedras

 

“A Poesia é como fazer um caminho a partir de uma pedra, e a Análise é fazer belas pedras a partir de um caminho” (Jacques-Alain Miller).

Ao caminhar pela vida, há momentos em que o caminhante enguiça.

Depara-se com um caminho há muito conhecido, já muito trilhado por seus pés; mas que de repente, sem que perceba como isto aconteceu, exige um grande peso a cada passo.

É por isto que Miller fala nesta metafórica pedra como uma produção necessária ao processo de análise. Necessária ao trabalho que aposta em possibilitar ao sujeito voltar a caminhar, mesmo que por um novo percurso, agora adornado por suas pedras, criadas como totens que demarcam suas conquistas.

Mas, criar pedras não é algo fácil, ainda mais as metafóricas! Pois, exige a força para gestar perguntas, mesmo quando buscando respostas. Exige a perspicácia para permitir questionar-se a partir do velho e repetido caminho, questionar-se a partir dos tropeços de rota: O que queres?!

(Daniel R Branco)

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De vales a Picos – A Conquista de Guilherme e Juliana

Algumas experiências de nossa vida fazem uma mudança tão profunda, que quando pensamos nelas, sabemos que é uma divisora de águas. Elas podem ser um grande evento inesperado, uma mudança de condição física ou social, ou simplesmente um novo sentido adquirido em um processo de autoconhecimento. Se terão frutos positivos ou negativos, depende do sentido dado por cada um de nós a estas experiências.

O momento decisivo para o casal Guilherme e a Juliana veio há alguns anos atrás, de forma totalmente inesperada, quando a Juliana começou a apresentar sintomas de uma síndrome degenerativa do sistema nervoso, durante a gestação.

Assustador, não é mesmo? Mas, o que será que eles criaram a partir desta tempestade?

Há algumas semanas atrás, tive o privilégio de participar de uma experiência junto com alguns amigos, na qual o Guilherme, a Juliana e o montanhista profissional Máximo Kausch iriam testar uma cadeira adaptada para uma expedição que levaria a Juliana ao Acotango, montanha de mais de 6000 metros de altura, que fica na fronteira entre Bolívia e Chile.

 

Hey!! Mas, espere aí! Como viemos parar em uma montanha depois daquele assustador diagnóstico?!?!

Para entender isto precisamos contar a história deste singular casal, pois, um dos resultados daquele divisor de águas é um projeto chamado Montanha para Todos. Uma idealização do Guilherme e da Juliana para lidarem com a grande mudança que ocorreu em suas vidas. Por isto, eles nos concederam uma entrevista um pouco antes de partirem para a expedição de ataque ao cume do Acotango, para que a Juliana seja a primeira cadeirante a conquistar uma montanha de mais de 6000 metros.

Juliana e Guilherme

Guilherme e Juliana rumo ao Pico Araçatuba para testar a Julietti (Cadeira Adaptada para Montanha).

 

[Daniel R. Branco]: Podem contar um pouco da história de vocês? Há quanto tempo estão juntos, como começaram a praticar montanhismo?

[Montanha para Todos]: Nós estamos juntos há 13 anos e começamos acampando. Logo no primeiro ano de namoro fomos apresentados pelo meu irmão à escalada em rocha; nos apaixonamos e fomos estudar para aprender a escalar. Após uns dois anos escalando direto vimos que estávamos ficando muito solitários e fomos em busca de conhecer mais pessoas. Como a ideia foi fazer trilhas, conhecemos pessoas muito legais. No fim de semana seguinte fomos subir o pico dos Marins e adoramos a experiência…de lá pra cá, não paramos mais.

[Daniel R. Branco]: Vocês poderiam contar um pouco do adoecimento da Juliana e o processo de diagnóstico? Afinal, é uma síndrome bem rara. 

[MPT]: Foi algo bem rápido e inesperado. No segundo mês de gestação ela começou a sentir as pernas pesadas e os médicos achavam que era uma questão de circulação, porém em um intervalo de 2 meses ela já não tinha mais coordenação das pernas, mãos , braços e a fala ficou arrastada. Por isto, tivemos que começar a fazer uso de cadeira de rodas. Envolvemos mais de 30 médicos, sendo a grande maioria mais voltada para o lado acadêmico e de pesquisa pois estavam mais atualizados às novidades. Logo, enviamos um exame para os Estados unidos e começamos a ter uma forte suspeita de síndrome paraneoplásica, mas precisávamos fazer um pet CT para tentar concluir o diagnóstico, o que seria muito prejudicial para o Ben, então fizemos 3 ciclos de imunoglobulina humana para tentar controlar a piora e começamos uma busca por um hospital e médico que topasse antecipar o parto do Ben para podermos realizar o Pet CT. Conseguimos e antecipamos o parto para 7 meses, logo em seguida pudemos concluir o diagnóstico , degeneração cerebelar paraneoplásica.

[Daniel R. Branco]: Como foi para vocês o processo de e tratamento? E como foi que tomaram a decisão de não parar de fazer o que gostam?

[MPT]: Quando surgiu a suspeita do diagnóstico da Ju, vimos que estava caminhando para ser algo irreversível. Perguntei para Ju o que ela mais gostava de fazer e ela disse Viajar e subir montanha, então fiz uma promessa para ela que onde ela quisesse ir, eu a iria levar. Então, comecei a pensar em equipamentos que possibilitassem leva-la novamente para a montanha.

Inicialmente pensamos em criar uma bicicleta para fazer a carreta austral. Fiz o projeto, mas na metade do caminho surgiu a ideia de levar ela no aniversário para montanha, mas no momento só tínhamos a cadeira normal, do dia-a-dia. Foi muito difícil a subida com a cadeira normal, afinal ela não foi projetada para isto. Foi então que começamos a dar vida à Julietti (nome carinhoso que a Juliana deu para a cadeira projetada especialmente para montanha).

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[Daniel R. Branco]: O que vocês gostariam que as pessoas soubessem sobre o projeto Montanha para Todos?

[MPT]: Gostaríamos que todos soubessem da importância do voluntariado para conseguir manter o projeto ativo, não adianta nada distribuirmos cadeiras Juliettis se não tivermos quem ajudar nas atividades. Outro ponto forte é o pessoal participar e sentir a energia que tem cada atividade. Costumamos falar que é mais gratificante para quem ajuda do que pra quem vai sentado.

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[Daniel R. Branco]: Posso atestar que vi isto acontecer no teste da cadeira Guilherme, realmente todos tiveram uma experiência incrível!

[Daniel R. Branco]: O que vocês gostaria que as pessoas soubessem quando participam de uma trilha com uma pessoa com necessidades especiais?

[MPT]: Do bem que estão fazendo para a pessoa ali sentada, que muitas vezes acha que a vida se limita a hospital, casa e terapias ou, pior ainda, Às vezes acha que a vida acaba quando se tem limitações.

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[Daniel R. Branco]: O Brasil ainda não tem uma cultura de inclusão de PNE em todos os âmbitos, dito isto, há algo no comportamento das pessoas que incomode vocês em relação à Ju?

[MPT]: Uma coisa que incomoda bastante é que quase todo mundo vem perguntar para mim o que a Ju tem. As pessoas têm receio de conversar com uma pessoa com deficiência, acho que isso faz parte da inclusão e temos que quebrar estas barreiras.

[Daniel R. Branco]:Como vocês têm percebido a inclusão da Juliana e da Julietti nos grupos?

{MPT]: É algo muito legal!! Conhecemos as pessoas no dia e em poucos minutos já somos quase íntimos, todos querem ajudar, querem conversar, brincar… A Julietti une as pessoas. É uma verdadeira ferramenta que motiva o trabalho em equipe e exclui as diferenças.

Ah…e é uma fazedora de sorrisos!

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[Daniel R. Branco]:Em nossa cultura (Brasil), como vocês têm percebido a inclusão social de uma pessoa com necessidades especiais?

[MPT]: Ainda falta muito, mas o brasileiro é um povo carinhoso e amoroso. Não está difícil, mas o que falamos constantemente em palestras e eventos é que enquanto as pessoas com deficiência não saírem para a rua, enquanto ficarem escondidas apenas nas atividades de tratamentos, a inclusão não vai acontecer. Precisamos trabalhar a inclusão reversa, e isso só vai acontecer quando as pessoas especiais aparecerem.

Sabemos que acessibilidade é algo que aqui não existe, mas não adianta esperarmos tudo ficar acessível, pois não ficará. Por isso tentamos estimular ao máximo empresas e jovens estudantes para que pensem em soluções, serviços e equipamentos que possibilitem que um local não acessível se torne acessível a grandes intervenções, assim também aumentaremos a inclusão.

[Daniel R. Branco]:E que lugar melhor do que a montanha para demonstrar isto, não é mesmo? Quais os próximos planos de vocês?

[MPT]: Terça 10/07/2018 estamos embarcando para Bolívia para dia 15/07 iniciar a viagem expedição Montanha para todos , dando tudo certo a Ju pode se tornar a primeira montanhista cadeirante do mundo a subir uma montanha com + de 6000 metros de altitude.

Retornando da Bolívia começaremos a morar em nossa caminhonete adaptada, onde pretendemos viajar, durante 5 anos, pelo Brasil e pelo mundo.

Já com a ONG Instituto Montanha para Todos, esperamos em breve contar com vários voluntários para nos ajudar na questão administrativa e ter algumas empresas patrocinadoras para podermos desenvolver novos equipamentos para promover a inclusão e acessibilidade em outros esportes outdoor, assim como distribuir pelo Brasil estes equipamentos para que qualquer pessoa possa utilizar, sem custo.

As cadeiras Juliettis hoje, já são 23 distribuídas pelo Brasil, e queremos até o fim do ano que vem ter pelo menos uma em cada estado.

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No dia 25/07/2018 a expedição alcançou 5800m em direção ao Cume do Acotango.

[Daniel R. Branco]: Vocês gostariam de deixar alguma mensagem para as pessoas que lerem sua entrevista?

[MPT]: A vida pode ser muito boa mesma com limitações. Basta olhar para o que temos e não para o que não temos.

 

Conheça o projeto Montanha para Todos, pode acessar o site http://montanhaparatodos.com.br/ ou os perfis em mídias sociais Fecebook: https://www.facebook.com/montanhaparatodos/ e Instagram: @montanhaparatodos

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As duas faces da superação: Seus treinos são movidos por um Ego Forte, ou Frágil?

Texto escrito para o Blog especializado em CrossFit: Hugo Cross e para a Kaluanã CrossFit

Vamos falar sobre CrossFit?!

Sim, mas tam

 

Aqueles mais curiosos sobre a História desta modalidade já devem ter descoberto que ela é permeada por um saudável clima de contracultura, seja pela mudança de foco do estático para o funcional, do saudável no lugar do mercadológico, ações contra a indústria de alimentos e, muito comentado mas pouco notado, pela cultura de comunidade em uma sociedade que nos empurra cada vez mais para o individualismo ou pela motivação à superar-se.

 

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Seja de forma pensada por já estar procurando um estilo de vida fora do mainstream, ou mesmo de forma despercebida simplesmente quando buscava os melhores resultados físicos, estes fatores fazem com que a grande maioria das pessoas que entram em um box de crossfit, criam uma paixão duradoura pela modalidade e sua cultura. Existem vários fatores muito positivos para isto, que certamente causam um bom impacto sobre a qualidade de vida de quem dá o primeiro passo para entrar em um box. Podemos falar sobre estes fatores em outra oportunidade, mas aqui vamos apontar para as duas faces de um deles; das quais uma delas precisa ser desmascarada: As duas faces da superação!

A ideia de superar seus limites é algo a que todos almejam em um bom treino, sentir-se presente fazendo seu melhor, perceber-se evoluindo passo-a-passo. E sim, isto pode ser extremamente produtivo como forma de dar vazão à excessos mentais que o dia-a-dia produz, motivação interna para treinar melhor e até mesmo a alta intensidade necessária para os bons resultados fisiológicos, funcionais e estéticos que todos já conhecem. Por outro lado, quem já entrou em um box de Crossfit sabe que é comum ouvir, ou ler a frase, que diz em letras garrafais: Deixe seu Ego de fora!

Esta frase foi criada exatamente por conta desta facilidade que a modalidade oferece para testar seus limites, mas por conta, também, da tênue linha que existe entre testar-se dentro de uma fronteira razoável e fazer mais do que se está fisicamente preparado no momento. O que podemos chamar de face ruim da superação. A primeira “face” leva aos bons resultados citados acima, já a segunda “face” pode levar a indesejadas lesões e uma vida curta na modalidade que até aquele momento estava lhe fazendo bem.

A imagem é conhecida por praticantes e temida por coaches. Aquele aluno, que ignora totalmente as indicações do Coach para diminuir a carga, ou adaptar um movimento, ou até pior, aquele que desiste no começo dos treinos por sentir-se frustrado por ter que adaptar os treinos. Adaptações (ou escalonamentos = scalling) que o Coach sugere, não por mal, mas porque sabe que estas alterações no formato original do treino (como prescrito, ou RX no vernáculo crossfiteiro) são a base da metodologia, e que sem elas, não há evolução. O resultado comum da falta destas adaptações acaba sendo, em geral, do praticante executando o treino com movimentos sofríveis, se colocando em risco sem nem mesmo perceber isto.

E, sim, não se enganem, pois em bons espaços de treino, os coaches vão insistir para que o aluno diminua a carga, ou faça um movimento mais simples que domina melhor, mas em alguns casos a negativa por parte do empolgado aluno é taxativa. Já presenciei a desconfortável situação do Coach precisar pedir para o aluno admitir que estava assumindo um risco desnecessário, apesar da instrução contrária de um profissional especializado.

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Esta atitude parece ilógica para você? E, é! Mas, vale lembrar que apenas uma pequena parcela de nossa mente opera de forma consciente e racional, sendo que muito do que nos habita passa despercebido e pode fugir à lógica. Se somarmos a isto o contexto no qual vivemos, de uma sociedade que supervaloriza o sucesso acima de tudo e ensina que deve-se mostrar uma imagem forte e invulnerável frente a todos, fica fácil entender que não é um problema de raciocínio lógico, nem uma patologia individual da qual devemos culpar cada um que se recusa a adaptar um treino, mas sim algo que escapa à esta lógica consciente.

Pois, conscientemente, todos sabemos que é preciso respeitar a existência de uma curva de aprendizagem, na qual ninguém começa executando um movimento complexo pelo seu final… Novamente, óbvio, não é verdade? Mas, existe uma armadilha mental, resultante de um conflito interno e inconsciente que gera uma dissonância entre este saber lógico e o fazer/agir na hora do treino. Como um pequeno curto circuito após o 3-2-1…

Vale a pena entendermos melhor como isto funciona! Pois espero que até este ponto esteja claro que o que o assunto de nossa conversa não é algo que acontece apenas dentro do Box, mas sim que permeia e certamente atrapalha toda nossa vida. Como sempre acreditei que o Crossfit vai além de puramente um movimento físico, ele nos surpreende com mais uma possibilidade de atravessar um mal-estar da cultura vigente, mas para isto, é preciso entender melhor o que acontece, digamos, por baixo dos panos.

Para isto precisamos falar um pouco mais de Psicologia a começar pela tão famosa frase, que nos incita a deixarmos nosso Ego do lado de fora do box; ao que alerto, geraria alguns resultados, no mínimo, catastróficos. Pois, o Ego é uma de nossas instâncias psíquicas indispensáveis para que possamos interagir com o mundo. Em linhas gerais, ele engloba nossa noção de eu, de nossos papéis sociais e daquilo que pensamos que as pessoas esperam de nós. Sem o Ego a relação entre mundo interno (mente, pensamentos, instintos, etc.) e o mundo externo, seria impossível. Em paralelo à noção de Ego, o conceito de Narcisismo, segundo a psicanálise, não adquire um tom pejorativo, mas sim denota a relação de construção do Ego, e os investimentos necessários para que seja construída uma imagem de Eu, com a qual atuamos diante da sociedade. O Narcisismo é parte necessária ao desenvolvimento do Ego e faz uma relação importante entre as ligações que fazemos com as outras pessoas mas, se pensarmos em termos de quantidade, uma personalidade narcísica, pode “se atrapalhar” no sentido de tornar o foco no outro algo que extrapola o equilíbrio.  Dito isto, o que provavelmente se quer dizer ao culpar o Ego pela “face malvada” do desafio, seria a alusão a uma personalidade extremamente narcísica e a um ego que, embora cause a impressão enganosa de se amar extremamente (como no mito de Narciso que se afoga ao se fascinar profundamente por sua imagem em um lago), na verdade nos fala de um Ego frágil, que precisa da constante aprovação de seus pares para poder entender-se amado.

Claro, todos precisamos disto em certa medida, mas nos casos de uma personalidade narcísica, estamos falando de uma necessidade tão premente que acaba direcionando as ações do sujeito até mesmo para atitudes que o possam colocar em risco, ou prejudicar sua relação com os outros. Portanto, se fôssemos escrever a frase das paredes de acordo com a Psicanálise, ela seria algo como: Aqui dentro, controle seu narcisismo!

Certo, até aqui já sabemos que estamos falando de um narcisismo em quantidade que gera uma sobrecarga, uma sobra de quantidade que beira a onipotência (pelo menos à ilusão dela). Este excesso gera algo que pode ser chamado de uma exterioridade nesta relação consigo mesmo, ou seja, a necessidade de ser visto e definido pelo olhar do outro, de forma constante, urgente!

Aí mora o grande problema, pois esta excessiva necessidade de ser “bem” visto pelo outro, como alguém forte, capaz, invencível mesmo que apenas em sua fantasia, entra em conflito com um detalhe do desafio, que seria a “face boa”, o SE do desafie-se. Mas, com toda esta pressão cultural e interna (inconsciente) para que o foco esteja em como somos vistos pelo outro, o SE do desafiar-se sobre uma espécie de fading out (desaparecimento), pois a visão de si mesmo pode ficar amalgamada à como o outro nos vê, e que de preferência nos veja como alguém forte, invulnerável.

Na prática, isto faz com que se esqueça que é preciso estar vulnerável para aprender. Não existe outra forma! E, na verdade, as pessoas que mais se desenvolvem, seja no crossfit ou em suas áreas profissionais, são aquelas com grande capacidade para lidar com este período de frustração e vulnerabilidade que a aprendizagem exige. E que continuará exigindo, mesmo com a evolução nos treinos, tendo em vista que a evolução é constante quando o movimento é constante. Aprendemos sempre e sempre estamos vulneráveis, mesmo com todo esforço para provar o contrário.

Outro “equívoco interno” gerado pela exteriorização (aquela do narcisismo em excesso), é a identificação da vulnerabilidade com fraqueza. O que novamente parece óbvio, pois se existe a necessidade de aprovação constante do outro, existe o desejo de mostrar-se como alguém forte, sempre forte! Mas, será que isto passaria pelo crivo da lógica?  Ora, chegar em um local cheio de pessoas, admitir que tem falhas e que está lutando para melhorá-las, lidar com a dificuldade de aprender ou com o tempo necessário para que o condicionamento físico aconteça, dificilmente vai ser confundido com outra coisa além de pura coragem!

Ok, agora vamos tentar ligar os pontos, ou agrupar os movimentos, hora de tentarmos um Full Snatch depois de entendermos as partes separadas: É fácil perceber o tamanho do autoengano que este conflito inconsciente cria, pois ao mesmo tempo que identifica erroneamente como coragem um comportamento que na verdade provém do medo de como o outro nos vê (não poder admitir que tem limitações para não ser visto como alguém que está aprendendo e não perder o “amor” do outro), também nos leva a identificar com fraqueza o estado de se mostrar aprendiz, para de fato aprender e evoluir.

Na prática de um treino de Crossfit, ao cair nestas duas armadilhas, o praticante coloca à frente de sua segurança e do bom desenvolvimento de seus treinos, a necessidade de ser visto pelos outros como alguém que escreveu RX no quadro e se mostrou muito “forte”.

Seria realmente uma prova de força não poder admitir que está em uma escalada para tornar-se melhor, e que esta própria escalada diz que precisará adaptar os treinos e cargas até estar pronto para elas? A Psicanálise nos diz que é exatamente o contrário, pois somente um Ego forte pode admitir suas limitações sem se importar (tanto) em como está sendo visto pelo resto do grupo.

Como nos mostra a pesquisadora da área social Brené Brown: “Longe de ser um escudo eficaz, a ilusão de invulnerabilidade desencoraja a reação que teria fornecido uma proteção genuína”. Qual seria esta proteção? Fazer um bom treino, bem executado, dentro de seus limites sem uma apresentação desesperada de movimentos duvidosos e arriscados, e mais importante, contar com a relação com o outro, uma relação autêntica e genuína baseada na troca, que a comunidade de um box possibilita e está pronta para isto. Corre-se o risco de perder tudo isto pela simples necessidade de provar para os outros que é mais forte, invulnerável, mas também inacessível, criando uma espécie de relação asséptico, parcial com o grupo; pois compartilhar somente as alegrias, ou fingir que a vida é somente feita dos posts de nossos PRs no instagram, não é realmente compartilhar muita coisa.

Portanto, quando bater aquela vontade, que vem de algum lugar que não se consegue perceber no momento, de não adaptar aquele wod do CrossFit Open com movimentos que você ainda não domina, aquela vergonha de fazer menos repetições que os mais experientes ou aquela vontade de aumentar as cargas mesmo quando o Coach disse para diminuir; lembre-se: forte é aquele que admite suas fraquezas para si mesmo e luta para mudar aquilo que pode, pois como disse em um de seus discursos Theodore Roosevelt: “o crédito pertence àqueles que estão por INTEIRO na arena da vida”, e estar por inteiro é ser forte para compartilhar e aceitar suas fraquezas, pois somente assim, na melhor das hipóteses, seremos mais fortes, como indivíduo e como comunidade.

 

Daniel R. Branco

Mestre em Psicologia, Psicanalista e Psicólogo esportivo. CrossFit Level 2 / CrossFit weightlifting / Proprietário da Kaluanã CrossFit em Curitiba.

O Último Discurso Motivacional: Conheça sua Âncora!

 

Quem nunca se sentiu desmotivado em alguma função, ou quando estava prestes a começar novos hábitos, mesmo que com o objetivo de trazer algo de melhor ou mais saudável para sua vida? É muito comum nestas horas as pessoas recorrerem à discursos motivacionais da internet, na empresa na qual trabalham, ou mesmo à livros de autoajuda. E todos estes podem até injetar algum ânimo na tarefa, pelo menos por um curto período de tempo.

Esta é uma demanda cada vez mais presente na atualidade, com todas as já conhecidas exigências de trabalho, dietas, prática de atividades físicas, gestão financeira, família, vida social ativa, etc… Enfim, todos os marcadores de performance que a sociedade parece impor, e dos quais surge aquela cobrança interna que diz: pobre daquele que não consegue que todos aqueles indicadores caminhem linearmente para uma ascendente constante.

Diante de tudo isto, é natural que a reação mais direta seja a procura por técnicas de motivação e comportamentos que criem e desenvolvam uma excelente performance em todos estes requisitos, exaustivos ou não, preferencialmente sem grandes questionamentos pessoais. Pensar menos e fazer mais!

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E, de fato, existe uma infinidade de técnicas, sejam de gerenciamento do tempo, gerenciamento de tarefas, autogestão pessoal, ou simplesmente técnicas para manter a motivação que podem até induzir a uma pequena dose de euforia (principalmente quando em um grupo). Como uma pílula de cafeína, um estimulante fácil, direto e barato.

Mas, estas técnicas seriam de fato, eficientes? A resposta não será tão direta como se poderia esperar, e talvez não tão motivacional, pois ela depende da situação. Vamos usar uma analogia para ilustrar isto melhor.

Você é um remador e está em sua canoa, tentando colocá-la em movimento como deseja. Mas, a vida de um remador não é fácil, as águas são voláteis e você percebe que suas remadas não estão fazendo você sair do lugar, ou pelo menos não estão rendendo como você desejaria. Claro, o mercado para os remadores é farto e não tarda a te apresentar pacotes de treinamento com novas técnicas de remada que te ensinarão uma nova e revolucionária postura 50% mais eficiente, assim como um remo de fibra de carbono, melhor e mais caro que seu velho remo de madeira, mas que tem maior superfície de contato com a água, mais leveza e vai duplicar sua capacidade de remar; não se esqueça das vitaminas e suplementos, estes sim vão otimizar ao máximo sua remada e preparar sua mente para colocar sua canoa em destaque de rendimento; garantido! Com todos estes novos implementos, você percebe que sua remada de fato melhorou e até rendeu QUASE como você almejava desde o início. Porém, pouco tempo depois, sua percepção muda e você observa que, novamente, não está saindo do lugar. Mas, não se preocupe, pois o mercado vai te oferecer novos produtos motivacionais para que, agora sim definitivamente, você encontre sua remada perdida.

A experiência e ciência da Psicologia, mostram que os discursos motivacionais ou as técnicas de autoajuda e autogerenciamento, realmente têm duração reduzida. O efeito positivo que é relatado em um primeiro momento, em geral, é resultado mais da autossugestão por estar fazendo (ou acreditando fazer) algo novo, do que realmente advindo de uma real modificação no comportamento da pessoa que busca por estas saídas. Ou seja, gera um efeito de curta duração e circunstancial (atrelado ao novo fazer), mas não um efeito duradouro; este sim, chamado alteração de traço, capaz de gerar uma significativa mudança no sujeito.

Mas, então, tudo está perdido e não há saída para mudar um padrão de comportamento, ou criar um novo hábito em prol de uma melhor qualidade de vida? Não é bem por aí, pois existe uma outra forma de abordar a situação, talvez não tão colorida com as promessas que as abordagens mainstream vão oferecer, mas certamente mais eficiente no médio e longo prazo e capaz de gerar um efeito duradouro.

Ainda adotando a analogia da canoa, o que esta abordagem alternativa vai exigir é que o remador pare por um momento para verificar sua canoa. Verificar o que está acontecendo com ela e com o próprio remador que não estão conseguindo sair do ponto A para o ponto B. Neste caso, verificar a âncora da canoa se torna essencial. E o que se constata é que, em geral, a canoa está, de fato, ancorada.  Isto faz com que mesmo a melhor postura de remada, ou o mais avançado remo, não sejam suficientes para fazer a canoa andar (parece óbvio agora, não?!).

Para entender o que faz com que sua canoa não evolua como você deseja, é preciso que você conheça sua âncora!

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Se você está buscando uma mudança, ou motivação para seu trabalho, esta busca em si já é o  sinal de que há algo incomodando, algo está fora de lugar. Por isto, nestes casos, a reação mais comum (mainstream) é entender que existe algo faltando, algo está em déficit e precisa ser corrigido através de uma nova técnica, medicação ou injeção de motivação para que você possa atingir sua nova posição (sair da inércia e praticar atividade física, deixar a desmotivação para tornar-se o vendedor mais motivado e eficiente da empresa, etc…) ou seja, entender que você precisa melhorar sua remada… Mas, e a âncora?

Aqui a analogia nos ajuda a perceber que o problema não á algo que está em falta, mas sim algo que é produzido pelo sujeito, assim como o desconforto é resultado do conflito que esta produção gera. Qual conflito? É provável que não seja possível desvelá-lo de forma direta, por isto, o mais indicado para lidar com a situação é um serio percurso de autoconhecimento, que pode ser alcançado através de uma psicoterapia bem direcionada. Nestes casos, é essencial entender que se trata de lidar com a real situação, pois conhecer sua âncora significa procurar entender e conhecer de perto o que está te mantendo no lugar, para somente assim conquistar o grau de autoconhecimento necessário para poder decidir como irá prosseguir.

Sim, decidir! Pois algo que a cultura do “quanto mais melhor” impede de pensar, é que existe ainda uma terceira saída: a decisão de não sair do ponto A para o ponto B. Conscientemente é possível decidir permanecer no ponto A, ou então criar um novo caminho para o ponto C. Decidir, consciente dos fatores que estão verdadeiramente envolvidos, é o mais próximo que se pode chegar de algo chamado liberdade. A liberdade de poder escolher, sabendo dos pontos positivos e negativos que cada escolha vai gerar mas, consciente do que está decidindo e de suas “âncoras” internas.

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Conhecer a sua âncora, ao contrário de tentar mascarar a desmotivação com a injeção externa de ânimo, é o investimento pessoal necessário para entender o que está acontecendo que se encontra desmotivado. O que está produzindo esta desmotivação, qual o conflito envolvido e os fatos subjetivos que estão produzindo este “atrapalho” (sintoma).

Conquistando esta liberdade pessoal, é possível sim se beneficiar de todas as técnicas existentes, das tecnologias que suportam o seu fazer e até mesmo, quem sabe, de um auxílio específico de um bom coaching. Mas, para isto, primeiro é preciso a coragem e a ousadia características daqueles que suportam a liberdade de se autoconhecer… Conheça, de perto, sua âncora para quem sabe poder navegar mais livremente pelas águas da vida.

 

As ansiedades / É normal sentir ansiedade?

Você já se sentiu ansioso? Angustiado*? Acredite, isso pode ser um bom sinal: significa que você está vivo!images

É claro que existem níveis de ansiedade que podem não ser saudáveis – e é disso que falarei agora, tomando como base a Psicanálise, e várias indicações científicas atuais sobre o tema. Como vou simplificar alguns conceitos, no final deixarei indicações de leitura para quem for da área e/ou quiser saber mais sobre o assunto.

Sim, parece contraditório dizer que alguém está vivo se está se sentindo ansioso, mas na verdade, a ansiedade está a serviço da autoconservação. Basicamente, a ansiedade, é uma resposta normal, que o Ego (parte da nossa estrutura psíquica) dá a uma situação de perigo, que pode ser interna ou externa.

Portanto, uma ameaça externa é algo fácil de visualizar e entender, mas e no caso de uma ameaça interna, como isto seria? Para responder isto, precisamos pensar em algumas diferenças que nós, humanos, temos dos outros animais que conhecemos.

 

A capacidade Humana de perceber perigos reais e criar perigos simbólicos

O perigo pode ser algo muito real e externo a você, como um predador, ou então o resultado da atividade simbólica (exclusividade do animal humano) que, embora não seja um perigo real que está fisicamente na sua frente, é a possibilidade de que este perigo aconteça e todas as ligações simbólicas que o sujeito irá fazer singularmente de acordo com sua história, com todas as suas experiências de vida, conscientes ou inconscientes.

Se para os outros animais a resposta é mais direta: Presença real do perigo à medo (respostas fisiológicas) à ação (luta ou fuga). No animal humano, além da possibilidade de responder a uma ameaça fisicamente presente e comunicar sobre ela, a linguagem torna nosso processo de resposta muito mais complexo. Mas, aqui você deve estar pensando que sim, você sabe que outros animais também se comunicam. Isto é verdade, porém, a linguagem que conseguem desenvolver é apenas em relação direta ao que estão comunicando, ou seja, você pode ver um macaco sinalizando a presença de um leão, real, presente naquele momento, mas não desenvolvem atividades simbólicas abstratas. O que quer dizer que, certamente, não o verá sentado em sua posição de vigia do bando, falando sobre sua preocupação de que ele não seja um bom macaco e possa mostrar seu valor para os outros do bando caso venha a aparecer um leão, nem em conflito com seu papel social como vigia. Macaco é macaco. Leão é leão… Corra!

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O animal humano é atravessado pela fala (linguagem) de forma mais complexa, possibilitando que a palavra “leão”, possa ser uma infinidade de outras coisas. Desde um perigo real que exige trabalho físico, até um conjunto de símbolos coletivos que podem indicar força, virilidade em algumas culturas, a bandeira da casa dos Lanisters em GOT, ou então um indicador de algo vinculado a uma experiência pessoal, singular a cada um, como por exemplo um personagem de um desenho assistido durante a infância que traz diversas lembranças (Thundercats, Simba?!).

Ou seja, nossa linguagem nos permite criar uma infinidade de referentes diretos e indiretos a uma palavra, criar conceitos e abstrações dos mesmos, mas também nos possibilita planejar o futuro e lembrar do passado e com isto, claro, nos possibilita também que nos preocupemos com eles e com todas as possibilidades que desejamos ou tememos que aconteçam.

Podemos usar como exemplo de perigo simbólico, mais comum para nós que não vivemos entre leões, uma prova de faculdade. A possibilidade de você tirar uma nota baixa e reprovar é, de certa forma, um perigo, uma ameaça àquilo que você acredita que esperam de você, além de poder trazer prejuízos práticos no futuro, como uma reprovação. Portanto, pode ser motivo de ansiedade, embora a ameaça não seja real e esteja ela na sua frente, a prova é apenas uma parte de tudo aquilo que você considera ameaçador, neste caso possibilidades futuras e representações simbólicas; portanto, internos e simbólico.

Em casos onde há sintomas relacionados à ansiedade, ou esta mesma se apresenta de forma constante e desvinculada de contexto, existe ainda a possibilidade de ser um resultado de uma ameaça ainda mais “interna”, pois seria uma reação do Ego (a instância psíquica responsável pela sua noção de Eu, pelo menos da parte consciente) a um desejo ou pensamento que gera conflito. Um pensamento, um desejo que entra em conflito com sua visão de eu, mesmo inconsciente, gera ansiedade. Por exemplo, o desejo de matar um chefe muito chato, pode ser reprimido caso isto entre em conflito com a visão de boa pessoa que o desejante tem de si, gerando angústia. Claro, existem pensamentos muito mais conflitantes e que precisam ficar inconscientes para não gerar ainda mais ansiedade, mas falaremos mais sobre casos patológicos à frente.

Já um perigo físico, real, é mais fácil de imaginar por exemplo se pensarmos novamente em um leão à espreita. Não preciso dizer o tipo de prejuízo que um ataque de leão traria a você, certo?

Os dois tipos de perigo exigem que você tome uma atitude para, de alguma forma, encontrar uma solução e eliminar a fonte de ansiedade. Desviar o olhar e fingir que o problema não existe, como avestruz que “esconde” a cabeça no buraco, só traria problemas. Principalmente no caso de um leão à espreita.

De uma maneira ou de outra, os dois tipos de situação podem gerar uma resposta que seria um aumento significativo de atividade psíquica. Somado a isto, nosso Ego trabalha para manter um nível de energia psíquica constante, e quando alguma situação eleva demais esse nível, temos… ansiedade. O que nos leva ao próximo ponto, que é…

 

Ansiedade descontrolada

Em alguns dos exemplos acima, a ansiedade serve como um incentivo, um desconforto que incentiva você a agir. No caso da prova, uma boa atitude aproveitar a energia que te coloca em movimento para se preparar para prova, mas também compreender que é totalmente normal e esperado estar ansioso, além de reconhecer também que outras pessoas que farão a prova certamente também estarão ansiosas por mais que se esforcem para mostrar o contrário – você não está sozinho – mantendo assim a ansiedade em um nível que te motive a agir, mas não te atrapalhe na ação em si. No caso do leão, a solução óbvia seria fugir para um lugar seguro.

Há casos em que a ansiedade não tem uma motivação clara, ou é totalmente desproporcional em relação ao motivo causador (como por exemplo ter uma crise de pânico por causa de uma prova da faculdade).

A ansiedade patológica, não surge de uma maneira conveniente, ou adaptativa. Ela aparece de maneira inadequada, e gera a sensação para a pessoa que a sente de não ter motivação alguma. O que leva muitas pessoas a procurarem auxílio de medicamentos por entenderem que, se você não consegue apontar o motivo diretamente (como o leão, ou a prova), então o motivo não existe. Mas, é aqui que precisamos lembrar que como nossa linguagem funciona de forma complexa, um leão não necessariamente, é apenas um leão. Portanto, uma crise desproporcional de ansiedade pode ter gatilhos disparados inconscientes que aparentam não existir, mas aparecem de forma clara após um tratamento psicoterápico bem direcionado.

Nesses casos, o mais indicado seria buscar auxílio profissional de um psicólogo para descobrir causas “escondidas” ou trabalhar para retomar um nível “normal” de ansiedade. Não existe uma fórmula mágica para estes casos, o uso de medicamentos traz diversos efeitos indesejados, provavelmente piores do que a ansiedade em si, e a psicoterapia é um processo contínuo e progressivo (como “matar um leão por dia”) mas certamente recompensador no final, quando o leão simbólico não mais se apresenta como uma ameaça.

Nesta época do ano é muito comum nos sentirmos ansiosos, pensando nos desafios que o próximo ano poderá trazer. Espero que tenha ficado claro que é normal, até mesmo necessário, sentir ansiedade em algum grau – e que um profissional pode ajudar em caso de necessidade.

Referências:

  • Freud, S. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901).
  • Jerusalinsky, A. e Fendrik, S. O Livro negro da psicopatologia contemporânea (2011).
  • Freud, S. Novas conferências introdutórias à Psicanálise (1933).
*Ansiedade e angústia são duas palavras comumente utilizadas para o mesmo fim, definidas pelo dicionário por um grande mal-estar físico e psíquico, estando também ligadas a um sentimento de ameaça impreciso e indeterminado. Freud utilizava no alemão o temo Angst, que pode ser traduzido tanto por angústia, quanto medo, porém utilizaremos a palavra mais comum: Ansiedade.

A Normopatia Contemporânea

Vivemos uma época em que a patologização do comportamento chegou a um discurso extremo que se assemelha a uma espécie de “normopatia”, ou seja, uma extrema necessidade de definir a normalidade, o que é ou deixa de ser aceito pelos padrões funcionais da sociedade; criando como consequência o seu negativo, ou seja, a necessidade de classificar tudo que escapa desta norma definida pela ciência ou outras instituições como, obviamente, patológico… Doença a ser tratada. Tem sido assim com estados de humor, aparecendo aí as depressões e bipolaridades sendo diagnosticadas a qualquer sinal de desvio do “normal”*, e está sendo assim agora, com uma regulamentação que vem da esfera jurídica sobre um possível tratamento da homossexualidade.

Ora, se pensarmos em um ser no qual hipoteticamente possamos separar por completo o corpo fisiológico do “mental”, assim como tentou Descartes e ainda atentam tantas linhas de pensamento; talvez fosse realmente possível definir o que deveria ser um comportamento evolutivo, geneticamente definido e garantido por nossos instintos parece ser possível com nossos paralelos do restante do reino animal.

Porém, não podemos esquecer que, embora sejamos sim pertencentes ao reinos animal, somos um animal atravessado pela linguagem, fazendo com que nosso corpo instintivo (ou pulsional em algumas traduções de Freud, lá em 1915) não tenha um objeto determinado, estanque, quando falamos em relação à sexualidade e também em relação à outras vias de satisfação.

Isto faz com que sejamos, em nossa formação enquanto indivíduos, inicialmente abertos a todas as possibilidades de trilhamentos para esta satisfação instintiva, ou como definiu Freud, o ser humano em sua constituição é Polimorfo. Portanto, mesmo que venha a definir sua satisfação instintiva (ou pulsional) no formato heterossexual, existe em um segundo plano, mais ou menos reprimido por cada um, um resquício da possibilidade de satisfação homossexual. É aí que aparecem os moralizadores com sua irresistível necessidade de caçar ferrenhamente no outro, aquilo que o habita, mesmo que debaixo de muitas camadas.

Concluindo, se em uma ser no qual a satisfação instintiva é definida em seu amadurecimento, mas é em sua cerne polimorfa, mantando as antigas vias de satisfação como possíveis mesmo que reprimidas, ou direcionadas para pequenas fontes de prazer similares (sublimadas), então se falarmos em uma possibilidade do profissional da saúde aceitar a homossexualidade como passível de cura, ele precisa necessariamente aceitar também a heterossexualidade para o mesmo fim. Se, neste contexto, existir uma cura homossexual, pode-se pensar em uma cura heterossexual.

A Psicanálise entende que o sujeito não tem uma forma única e correta de funcionamento a ser definida, e imposta, pelo tratamento. Pelo contrário, entende que o tratamento em si é possibilitar que cada um possa lidar com sua forma própria de lidar com seus desejos. E sim, ela vai ter seus furos, dificuldades e sofrimentos em qualquer uma das possibilidades.

Quem sabe, ao invés de tentarmos desesperadamente “normalizar” o mundo, possamos aceitar cada vez mais as diferenças e entender que elas podem sim, gerar saídas muito criativas para esta arte tão complexa que é o viver.

*O que não implica na inexistência destes quadros, mas que o seus diagnóstico passou por um “afrouxamento” a ponto de qualquer desvio daquilo considerado como normal ser passível de tratamento baseado em medicamentos. Em geral a depressão, a bipolaridade e os quadros infantis relacionados à aprendizagem, passaram a ser medicados não apenas em casos agudos, na medida que todo desvio passou a ser considerado agudo…

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“Ah! Se fosse possível esquecer!”

A frase escolhida para o título deste artigo poderia ser um exemplo das queixas que rotineiramente são escutadas na clínica psicanalítica. Mas, não é esta sua origem: foi retirada de um relato disponível na internet, escrito por alguém que deseja esquecer recordações dolorosas. Segundo quem a escreveu, para esquecer deve-se aceitar os fatos, perdoar, até que seja possível lembrar-se com menor frequência e sem emoções, algo que só o tempo e um tipo de “entendimento desapaixonado” poderiam proporcionar. Supondo que a partir disto seria possível olhar para a lembrança como se olha para uma imagem externa e indiferente, sem emoção.

Este desejo de esquecimento não é incomum, pelo contrário, ele passa pelo imaginário de todos aqueles que um dia já vivenciaram algo doloroso. É um desejo natural: se algo nos faz sofrer, que seja então “engavetado” em um canto inacessível de nosso mundo psíquico, esquecido. Que lá fique e não mais incomode!

Basta, porém, um pouco de reflexão para que a seguinte pergunta nos ocorra: É possível que este conteúdo esquecido deixe de existir e produzir efeitos sobre o indivíduo? Antes de respondê-la, precisamos pensar um pouco mais sobre o esquecimento, o que acontece com os conteúdos de nossa mente que ameaçam causar sofrimento.

Embora seja comum pensar no esquecimento como algo de caráter passivo, que acontece com o passar do tempo e sem grande participação do indivíduo, a etiologia da palavra esquecer demonstra que é exatamente o contrário, tornando clara sua conotação de atividade. Proveniente de ex-cadere (cair para fora), esquecer está sempre relacionado a ex-pulsar, ex-ilar ou ex-teriorizar um conteúdo. Denotando uma atividade psíquica, que como outra qualquer, requer esforço e investimento por parte do sujeito.

Este esforço para exercer esta atividade se dá devido ao desprazer – sofrimento – gerado por algum conteúdo psíquico que precisa ser retirado do alcance da consciência, exilado em uma porção do aparelho psíquico que Freud denominou inconsciente. Isto não acontece apenas com recordações; pensamentos, imagens e desejos ameaçadores são também repelidos e afastados da consciência, em uma tentativa de evitar que produzam grande desprazer. Para isto nosso aparelho psíquico faz uso de um processo chamado recalcamento – ou repressão – que garante que alguns conteúdos carregados de afeto mantenham-se inconscientes. Inconscientes sim, porém, permaneceriam indiferentes?

Segundo a Psicanálise as lembranças recalcadas, “esquecidas”, não estão simplesmente ausentes, nem tampouco são indiferentes pois, do seu lugar de não-dito, exercem seu poder, gerando também sofrimento ao indivíduo. Vale lembrar também que o total recalcamento de uma memória só é provável em situações realmente traumáticas, exigindo grande trabalho mental para que seja mantida inconsciente. Em geral, as lembranças dolorosas permanecem em um estado latente, mantendo inconscientes os fragmentos mais carregados de afeto; como, por exemplo, a carga sentimental vivenciada no momento ou uma parte específico do que foi dito.

Portanto, a ação sugerida pelo autor da frase de nosso título – Ah, se fosse possível esquecer – que sugere tornar um conteúdo psíquico “neutro” para que seja rememorado sem emoções, seria uma tentativa de trabalho para que a carga afetiva vinculada a uma recordação possa ser “escondida” em outro lugar, distante da consciência. Porém, é exatamente este ilegítimo afastamento que proporciona que tal conteúdo permaneça imutável no inconsciente, longe do conhecimento e da atuação consciente do sujeito, agindo sobre este de forma indireta, possibilitando que os mais variados sintomas se manifestem inicialmente sem ter relação com o conteúdo original, mas que no contexto de uma análise se mostram muitas vezes vinculados àquelas lembranças “esquecidas” .

O trabalho realizado em um processo de análise compreende exatamente possibilitar que estes conteúdos sejam assimilados pelo sujeito, admitidos em sua história, permitindo que o paciente aproprie-se daquilo que fazia parte de si, mas que o recalque defensivamente mantinha à distância, em uma tentativa limitada para evitar o sofrimento. Este trabalho só é possível através da paulatina desconstrução destes movimentos defensivos de recusa e repressão. Não atuando para modificar o conteúdo que estava reprimido, mas sim o sujeito, que passa a ser agente ativo em sua história. Esquecendo, mas não no sentido de extrair para tornar uma imagem sem sentimentos, e sim de tomar posse daquilo que sempre foi seu com toda a carga de sentimentos que merece, mas para a qual o indivíduo agora está pronto, silenciando seus fantasmas.

Para saber mais:
Freud, S. Recordar, Repetir e Elaborar (1914).
Freud, S. O Recalque (1915).
Mezan, R. A Sombra de Don Juan (1993).

A Formação do Analista

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Falar sobre a formação do analista é esbarrar, inevitavelmente, em algumas questões fundamentais para que se possa pensar em como deveria ser instituída a formação daquele que deseja ter como profissão a psicanálise, ou seja, deseja ser um analista. Esta discussão se faz necessária não apenas por um simples exercício teórico, pois há uma questão prática, legal, envolvida a partir do momento que se tenta instituir a prática como profissão regulamentada pelo Estado. Em 2010 um projeto de lei tramitava no congresso com o intuito de incluir a profissão de analista, que neste caso estaria incluída em um grande “pacote misto” de terapias que seriam regulamentadas por uma federação nacional das terapias (FENATE), neste “pacote” estariam as atividades de acupuntura, homeopatia, terapia floral, fitoterapia, psicanálise, psicoterapia, tai-chi-chuan, doin, auriculoterapia, entre outras (LIMA, 2009).

Portanto, é imprescindível uma discussão acerca do que deve contemplar a formação de um analista, pois ao abster-se da discussão, corre-se o risco de que sejam impostos métodos de avaliação, ou mesmo de formação que nada têm da essência da psicanálise e que não contemplam suas singularidades.  Neste sentido, o que poderia ser uma formação para que alguém seja permitido dizer-se analista, e quem poderia determinar isto, o estado, alguma instituição ou o próprio sujeito?

Respeitando o fato de ser outro contexto histórico, é possível recorrer a Freud, que trata  deste assunto em seu artigo A Questão da Análise Leiga de 1926. Texto no qual se pode observar a opinião de Freud em relação a fazer uma correlação entre a capacidade de ser analista e uma formação universitária específica como Medicina, e também Psicologia se fosse nos dias de hoje, pois à época de Freud esta ainda não havia sido instituída como profissão. Neste texto Freud demonstra a opinião de que o saber com o qual trabalha o analista estaria além da formação acadêmica, além daquilo que se poderia apreender exclusivamente em uma universidade.

Tendo isto em vista, pode-se pensar que, por mais que uma graduação, ou pós-graduação possam ensinar (usando aqui um verbo diferente de transmitir) sobre a teoria psicanalítica, os funcionamentos meta-psicológicos e mesmo sobre a técnica criada pro Freud, não são suficientes para formar um analista. Este raciocínio pode ser estendido para a própria direção do tratamento, pois as diferentes formações na área de saúde, como psicologia ou medicina, têm também as suas especificidades, suas formas de entender fenômenos como o sintoma psíquico, o sintoma físico e mesmo a relação corporal/mental, que podem estar mais próximas de um modelo técnico que visa um ideal de funcionamento psíquico/comportamental  que demonstram  pouca relação com a direção de uma análise ou mesmo com o conceito de sintoma dentro das formulações de Freudo. Para diferentes áreas da saúde, mesmo um conceito epistemológico fundamental como o corpo, principalmente quando se trata de um visão mais fisiologista em relação a este,  terão pouca proximidade com o corpo pulsional da psicanálise, um corpo permeado pelos desejos do inconsciente, assim como pela estrutura da fala. Ou seja, tais formações acadêmicas não garantem que aquilo que estes profissionais fazem seja  que se espera de um analista.

É neste sentido que talvez seja possível questionar se a prática do psicanalista pode ser passível de regulamentação. Pois, se este for o caso, qual seria o critério? A formação acadêmica, um exame técnico após a finalização do curso que avaliaria os conhecimentos teóricos do candidato ou as normas das próprias instituições de Psicanálise? E se a melhor resposta fosse a última opção, haveria outro problema, pois são várias instituições com suas próprias regras, portanto, de qual delas seira a prioridade da IPA, das escolas francesas, inglesas, ou norte-americanas ? Ou então, cada escola teria seu critério e forneceria uma “chancela” para o profissional?

No outro oposto da equação teríamos a possibilidade de nenhuma regulamentação. Neste caso aquele que queira trabalhar com esta disciplina poderia mergulhar nas profundas águas do próprio inconsciente, estudar a teoria e fazer uma supervisão ou análise de controle, conforme as tendência da escola da qual se aproximar. Mas, neste caso, quem garantiria os profissionais que o atenderiam nesta sua construção profissional? Ou mesmo, o que garantiria que qualquer um não poderia auto-intitular analista sem ter percorrido o caminho do tripé da formação? As próprias regras do “mercado”?

Neste ponto, pode-se perceber que algumas destas perguntas já contém suas próprias respostas, pelo menos no que diz respeito à forma que poderia se esperar de uma formação, e talvez esta mesma forma tenha alguma garantia de que este processo direciona o candidato a ter algo de analista em algum ponto, ou à desistir da empreitada. Talvez, isto seja um pequeno delírio pessoal, mas parece que aquilo que é conhecido como tripé  – que consistiria no estudo da teoria, na análise pessoal (experiência subjetiva com o inconsciente) e na supervisão dos casos atendidos pelo candidato – possa acrescentar alguma esperança ao processo. Pois, espera-se que em algum momento o desejo de tornar-se analista seja conteúdo de trabalho de sua própria análise, assim como o estudo poderia levantar questões sobre a possibilidade de atuar com aqueles conceitos, e este trabalho que começa primeiramente com o esforço para compreendê-los. Acrescenta-se a isto a experiência de atender a queixa de outro e conseguir utilizar tanto a experiência pessoal – do analista – com a análise, quanto o estudo teórico para atuar. Parafraseando um dos excelentes personagens de Goethe: “É em vão que se vagueia de ciência em ciência: cada um aprende somente aquilo que pode aprender” (Mefistófeles – em Fausto).

Estas dificuldades inerentes da própria prática do psicanalista já podem ser uma espécie de avaliação que geraria uma “linha de corte” natural. Acrescentando que talvez o próprio “mercado” possa fazer também esta função, tendo em vista que um mau direcionamento não seria de grande ajuda para manter-se como profissional[1]. Mas, esta sem dúvida não é uma equação perfeita, assim como também não são as propostas de regulamentação vigentes. Corre-se aqui o mesmo risco que acreditavam correr os antigos navegadores gregos: Quando navegavam muito próximos a uma das bordas do mundo eram ameaçados pelo monstro Cila, mas se tentassem se afastar demais deste, corriam o risco de aproximar da outra extremidade e cair nas garras de outro monstro, Caríbdis. Portanto, ao se navegar entre Cila e Caríbdis, é aconselhável não recorrer aos extremos.

Assim, na questão da formação do analista, o tripé acena como esperança, tendo em vista que é em essência comum às diferentes escolas de psicanálise, e  mantém em sua base a experiência com o próprio inconsciente, pois é esta experiência que pode não ser garantia para que se faça um analista, mas é sem dúvida, pré-requisito.

Não há garantias, só a do desejo…

Referência consultada:

  •  LIMA,A. Projeto de lei 64/2009.

[1] Isto não levando em conta a possibilidade de um Darwinismo social às avessas como mostrado no divertido filme Idiotopia; uma comédia de divertimento fácil, mas que tem uma proposta de fundo muito interessante, pois o autor extrapola o raciocínio de que em uma sociedade onde os mais bem sucedidos socialmente não são os intelectualmente mais capazes a “seleção social” levaria a um futuro no qual o mundo seria dominado por aqueles que conseguissem entreter as massas e enriquecer com isto, levando a uma seleção subvertida que resultaria em uma sociedade bem pouco capacitada para resolver até os problemas mais simples do cotidiano.

Os Games e o Virtual: O que está em Jogo?

Recentemente tenho recebido algumas perguntas em relação a jogos de videogame e computador com os quais crianças, adolescentes e mesmo adultos vêm dedicando cada vez maior quantidade de tempo. Por esta razão, e também por acreditar que seja um fenômeno importante, tentarei em algumas linhas abordar o tema.

Os jogos e sua realidade hoje:

De acordo com a União internacional de telecomunicações[1] no início de 2010 estimou-se que mais de 479 milhões de pessoas em todo o mundo utilizavam algum serviço de acesso a dados da internet, o que equivale a um aumento de 445% em relação ao ano 2000[2]. No início de 2010 os jogos online tomaram a posição dos correios eletrônicos como segunda utilização mais comum deste contingente, ficando atrás apenas dos portais de relacionamento – segundo pesquisa publicada pela Nielsen Company[3].

As novidades na área dos jogos têm sido constantes, criam-se jogos cada vez mais realistas em termos de imagem e som, nos quais o jogador deve interagir com uma quantidade enorme de recursos de jogabilidade, culminando mais recentemente em games com leitores de movimento corporal, dispensando em parte – ou totalmente – o uso de controles e botões.

Um dos segmentos de maior crescimento nesta indústria são os jogos online para grandes massas de jogadores, conhecidos como MMOMassively Multiplayer Online – sendo World of Warcraft o jogo mais popular com cerca de 12 milhões de assinantes em todo o mundo. Diferente dos jogos tradicionais, os MMOs possibilitam que centenas de jogadores se conectem através de um servidor central para jogarem ao mesmo tempo, sem um destino pré-definido e no mesmo “mundo virtual”.

Pode-se falar em mundos virtuais, pois estes são contextualizados de acordo com cada jogo, tendo sua própria economia, raças, profissões, sistema de transportes, redes sociais, uma história própria, além de várias outras possibilidades que os tornam atrativos de jogar e cada vez mais complexos.
Embora os consoles de videogame estejam convergindo para os jogos online, em sua maioria estes ainda precisam de um computador ligado à internet como principal suporte. Alguns destes jogos possibilitam reunir centenas de jogadores em uma mesma rodada.

Assim, podemos pensar em algumas ideias com relação a estes jogos, nossa cultura e os jogadores como indivíduos.

 Por que jogamos e o que está em jogo?

Sempre que há uma grande adesão cultural em relação a alguma atividade, podemos voltar nossa atenção para o que nesta atividade “fisga” o indivíduo, ou quais processos psíquicos estão ali envolvidos. Com os jogos não seria diferente, tendo em vista a grande aceitação do público fica claro que não se trata de algo de menor importância.

O que se tem notado é que entre uma enorme variedade de títulos que esta milionária indústria tem criado, os jogos mais vendidos envolvem algum tipo de enfrentamento de inimigos, seja de forma mais realista e bélica, ou mais infantil. Portanto, lendo o jogo como um texto, é possível dizer que estes jogos têm em seu pano de fundo alguma relação com a agressividade. Alguns utilizam esta ideia de forma direta, como os jogos de guerra, enquanto outros o fazem de forma lúdica, deixando a agressividade fluir para figuras de monstrinhos – por exemplo, nas tartarugas mal humoradas do jogo Mario.

Isto indicaria ser necessário um ambiente virtual para dar vazão à alguma agressividade? Talvez os processos envolvidos não sejam tão simples assim, mas em seu famoso ensaio O Mal Estar na Civilização (1930), o fundador da Psicanálise nos permite traçar algumas possibilidades.

Neste texto de 1930 Freud discorre sobre a dicotomia da aquisição/manutenção da felicidade e do processo civilizatório, considerando que a mesma civilização que nasceu da necessidade de evitar as fontes de sofrimento, acaba sendo responsável pela frustração do indivíduo. O processo civilizatório tem o intuito de “proteger os homens contra a natureza e ajustar os seus relacionamentos mútuos” (FREUD, 1930), ou seja, proteger a sociedade contra os processos pulsionais (ou instintos) e regular nossos relacionamentos sociais, a fim de que estes não estejam sujeitos a uma vontade, ou desejo arbitrário. Porém, esta própria civilização diminui a liberdade, já que o próprio conceito exige restrições e a justiça exige que ninguém fuja a estas restrições, que ninguém fuja à renúncia aos instintos; é exatamente esta renúncia um dos fatores de frustração, sendo que pressupõe a não satisfação de pulsões poderosas, gerando uma frustração social.

Dentre as renúncias exigidas pela vida social, a satisfação sexual pode ser destacada em paralelo à agressividade. A necessidade de uma adaptação social e bom relacionamento – pelo menos com o grupo próximo – exigiu do Homem um grande controle das pulsões agressivas. Em vista das necessidades impostas pelo princípio do prazer, pela agressividade afigurável no homem, o indivíduo encontra-se dividido, descontente em um limbo entre suas vontades de satisfação individual e as exigências sociais impostas pela civilização.

Desta forma, podemos pensar em vários exemplos de atividades humanas nas quais a agressividade, impossibilitada da passagem ao ato, tem um destino mais aceitável pelas imposições da civilização. Talvez, uma parte da grande atração destes jogos seja o fato de possibilitarem que uma violência simulada (ou real no caso de prejudicar outros jogadores) seja praticada sem que isto seja um atentado às leis e regras sociais.

Se esta é uma das motivações para o ato de jogar, então poder-se-ia concluir que não deveria haver preocupação quanto a isto? Acredito que não seja tão simples assim.

Algumas pesquisas mostram que adolescentes passam aproximadamente 14 horas por semana envolvidos em algum tipo de jogo eletrônico. Porém, a experiência na clínica com adolescentes indica que este número é provavelmente maior; mesmo não falando de casos específicos onde o tratamento estaria ligado ao jogo, mas sim de adolescentes que têm estes jogos apenas como uma atividade comum em seu dia-a-dia superando duas horas diárias por larga margem.

Como toda atividade constante e regularmente praticada traz algum efeito sobre aquele que a pratica, podemos pensar em quais efeitos, ou quais repercussões, para o Sujeito que estes jogos podem facilitar. Lembrando que, embora o número de adultos que se dedicam a estes jogos seja significativo, o grande público desta atividade está ainda em fases de formação, de desenvolvimento e, portanto, mais vulneráveis em seu processo de tornar-se indivíduo.

Alguns autores, entre eles o filósofo alemão Christoph Türcke, defendem que a inundação de estímulos provocados pela torrente de imagens destas mídias exercita algo que pode ser chamado de uma “distração concentrada”. Embora o termo seja ambíguo, á na verdade cheio de sentido, pois denota que enquanto uma imagem singular promoveria a atenção focada, bilhões destas imagens fazem o contrário mantendo o indivíduo concentrado neste turbilhão, sendo porém mantido distraído de todo o resto por longo período.

Portanto, o grande “treinamento” facilitado por estes longos períodos resultariam, como facilmente se poderia pensar, não em uma grande capacidade de concentração e processamento, mas sim em uma incapacitação para o pensamento complexo e a reflexão, corroborando a preocupação do sociólogo Zigmunt Bauman – autor do livro Modernidade Líquida – quando diz que na era da informação arriscamos um neo-analfabetismo.

Porém, tão ou mais preocupante, é que esta incapacitação ao ato de refletir pode estar colaborando para um afastamento cada vez maior do indivíduo da sensibilidade e da possibilidade para enfrentar suas questões e frustrações. Parafraseando o C. Türcke: “A repetição de imagens que vivemos é uma forma de não lidar com a dor, com o que achamos que é terrível”. Um efeito comparado ao das drogas em seus usuários.

Paralelamente, algo que a mídia tem frequentemente demonstrado quando fala de jogos, é um grande medo em relação à possibilidade de fuga da realidade por parte do jogador, ou o medo de que os jovens comecem a repetir os comportamentos violentos dos jogos com seus colegas. Contudo, isto não tem se mostrado verdade e apenas uma pequena parcela corre este risco em função de processos patológicos que dificultariam estas pessoas a diferenciarem aquilo que é fantasioso (o jogo) de sua vida real. Nestes casos a patologia não está relacionada ao jogo, mas sim a uma estrutura prévia do indivíduo.

A grande violência dos jogos não está neste tipo de risco, mas sim na alienação que o jogo pode causar e nas dificuldades de desenvolvimento de algumas atividades mentais, principalmente na capacidade de se relacionar.

Uma atividade de lazer, de distração periódica, é certamente bem vinda e necessária, mas entendo que várias horas de prática diária devem nos chamar a atenção para o que, literalmente, está em jogo. Os jogos e a internet não são o problema, mas sim a forma sem limites como estes são utilizados e sua aceitação incondicional por parte de nossa sociedade.


[1] Agência da ONU especializada em tecnologia de comunicações (http://www.itu.int/en/pages/default.aspx)

[2] Estes dados levam em conta apenas os serviços de banda larga, considerando-se que o número possa ser muito maior se computadas as conexões por telefone, ainda existentes em países menos desenvolvidos.

[3] Empresa especializada em estatísticas de utilização da internet e meios virtuais (http://blog.nielsen.com/nielsenwire/)

O Sucesso de Harry Potter e as Histórias Infantis

Com o final da história do pequeno bruxo, que se estendeu por mais de uma década, fica claro o grande sucesso desta trama. Sucesso decorrente da atenção não apenas por parte das crianças, mas também de diferentes gerações. Enquanto adultos acompanharam o enredo com interesse elevado, viram os personagens crescerem acompanhados de boa parte de sua plateia.

Outro fator que destaca a importância da série foi a forma como esta ganhou projeção mundial. Pois, diferente da grande maioria das produções atuais, seu reconhecimento público não resultou inicialmente do investimento de grandes editoras e estúdios, mas sim, conquistou sua projeção pelas vozes de seus pequenos leitores, para só depois ganhar o mundo através dos enormes mecanismos da indústria do entretenimento. E tudo isto, partindo de uma geração acusada de ser desinteressada pela leitura.

Somando estes fatores – tempo decorrido de seu início, um romance que desperta o interesse pela leitura e o reconhecimento partindo do público, além de vários outros que poderiam ser citados – fica a sensação de que há realmente algo nesta história que cativou o coletivo de forma singular.

Não é de hoje que histórias infantis ganham grande projeção entre os pequenos, sendo que alguns clássicos perduram atravessando gerações por séculos, inicialmente pela transmissão oral, para só depois a escrita, até alcançarem as diferentes mídias de hoje. Alguns exemplos são os famosos contos de Charles Perrault e dos irmãos Grimm.

Diante disto, podemos levantar o questionamento: o que tem estas histórias que fascinam tanto, levando algumas a continuar por séculos entre as prediletas das crianças?

As histórias maravilhosas:

 

Não pretendendo uma resposta definitiva, mas sim uma discussão sobre o tema, podemos pensar no que estas histórias integram à vida psíquica daqueles que tanto deslumbram.

Historicamente, as histórias infantis surgiram a partir dos contos de tradição oral camponesa do século XVIII – que a princípio não eram direcionados especificamente à criança[1] – mas foi apenas no séc. XIX, com a gênese da família nuclear e a atenção à infância como fase de desenvolvimento, que houve a infantilização destas narrativas tradicionais sendo então transformadas nos atuais contos de fadas.

Por definição, um conto de fadas é uma história que apresenta elementos extraordinários, surpreendentes, encantadores, não precisando necessariamente haver fadas em seu contexto. Neste tipo de conto o elemento fantástico é essencial por garantir que se trata de outra dimensão, de outro mundo, com possibilidades e lógicas diferentes do real.

Alguns destes contos são, reconhecidamente, valiosos instrumentos para um desenvolvimento psíquico saudável. Como a criança está em processo de delimitação das fronteiras entre o real e o imaginário, entre o mundo externo e o pensamento –fronteiras estabelecidas em parte pela repressão das representações inconscientes – todas as possibilidades da linguagem lhe interessam para compor o repertório imaginário de que ela necessita para “elaborar os enigmas do mundo e de desejos” (Parafraseando a Psicanalista Maria Rita Kehl).

Em seu livro, fadas no divã, Diana e Mário Corso indicam que a forma psíquica do uso dos contos de fadas pelas crianças, é similar à forma e função em que o mito era usado em sociedades antigas, ou seja, possibilitando ao indivíduo que fantasiosamente adentre a trama e encaixe suas questões nos esquemas interpretativos disponíveis para o mito (neste caso o conto de fadas). De forma mais clara, podemos dizer que o indivíduo seleciona fragmentos, unindo-os a sua própria maneira, de forma a construir uma explicação para assuntos que os questionam.

Os mitos, assim como os contos de fada, estão repletos de material inconsciente, reprimido, subjacente em suas tramas e personagens. As mensagens dos contos de fadas são transmitidas desde a mente consciente até a inconsciente, e como lidam com problemas humanos universais, estas histórias falam ao ego em germinação, encorajando seu desenvolvimento enquanto também aliviam tensões inconscientes, ou seja, demonstram caminhos pelos quais os desejos Inconscientes podem ser parcialmente satisfeitos com o mínimo de conflito entre as requisições do Eu[2] e da consciência moral (Superego), ambos ainda em desenvolvimento.

Para que possa superar as dificuldades psicológicas advindas do crescimento – como a superação das decepções narcísicas, dilemas edípicos, rivalidades fraternas, a sexualidade, o abandono de dependências infantis e, finalmente, sua individualidade – a criança precisa elaborar estes conflitos inconscientes. Este trabalho de elaboração não pode ser atingido de forma racional, mas familiarizando-se com este eu inconsciente, através de devaneios prolongados, fantasiando sobre elementos adequados da história em resposta às pressões inconscientes.

Harry Potter:

        

Uma obra extensa como esta dá margem a uma quantidade sem fim de possibilidades interpretativas. Tendo isto em vista, não pretendo desconstruir a obra em um texto de poucas palavras, mas sim levantar algumas possibilidades de reflexão sobre alguns temas comuns às histórias clássicas que se mostram presentes na história do bruxinho.

Embora alguns críticos tenham sugerido que o romance de J.K. Rowling pudesse induzir seus leitores a ater-se à fantasia, ficando “presos” a ela, vimos acima que isto não é verdade, pois o fantasiar e a ficção fazem parte de certas etapas do desenvolvimento do Sujeito e podem, se bem conduzidos, auxiliar na elaboração de alguns conflitos típicos da infância ou, como neste caso, da adolescência.

A história do bruxinho trata de temas comuns a todos adolescentes e pré-adolescentes, como a amizade, coragem, ambição, assim como dilemas éticos e sociais que permeiam o mundo dos bruxos – como, por exemplo, a discriminação dos “trouxas” e as constantes escolhas que Harry tem que fazer entre o caminho mais fácil, e o certo.

Outro fator são os heróis imperfeitos, e o caráter complexo de alguns, levantando a necessidade de maiores ponderações por parte do protagonista. Pois mesmo Dumbledore, uma pessoa extraordinária, se revela portador de falhas e de uma triste história em sua juventude, afastando sua imagem de ideal inalcançável para algo mais próximo do real; não muito diferente do que acontece com as figuras paterna e materna conforme a criança cresce. Julgamentos precipitados também são induzidos pelo caráter de Severus Snape, que ao final se revela o grande protetor de Potter e um homem apaixonado e devotado.

Parece-me bastante nítida a relação entre a figura de Voldemort e um resquício de representação da figura paterna – diluída na história entre vários personagens – com a qual Potter precisa acertar algumas contas. Voldemort assassinou os pais de Harry, mas é uma presença constante em sua vida, e divide com ele várias coincidências (como a varinha e a capacidade de falar com ofídios) culminando na necessidade de que algo em Harry seja eliminado para que o mal pereça. Isto me parece uma facilitação para lidar com os sentimentos ambíguos da criança em relação ao pai (conflitos edípicos), pois esta diluição em várias figuras paternas sendo vários deles bons, protetores, amorosos e corretos e um oposto e maligno que deve ser eliminado. Este tipo de conflito é uma constante nas interpretações dos contos clássicos feitas por Bruno Bettelheim em seu livro A Psicanálise dos Contos de Fadas.

Embora a história de Harry seja ainda recente comparada com alguns clássicos, parece reunir alguns temas universais, além de uma trama interessante e dinâmica, pois como já nos disse Maria Rita Kehl: “A sobrevivência dos contos reside em sua capacidade de simbolizar e resolver conflitos psíquicos” e, para isto, os contos de Rowling parecem demonstrar alguma capacidade. Mas, só o tempo poderá dizer se a saga do pequeno bruxo perdurará por gerações.


[1] A história original da Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, não tinha um final nada parecido com a versão de Perrault que conhecemos, pois o lobo devorava a todos, inclusive a protagonista.

[2] Eu ou Ego: Polo defensivo da personalidade, encarregado dos interesses da totalidade do sujeito, mas não totalmente autônomo.