“Ah! Se fosse possível esquecer!”

A frase escolhida para o título deste artigo poderia ser um exemplo das queixas que rotineiramente são escutadas na clínica psicanalítica. Mas, não é esta sua origem: foi retirada de um relato disponível na internet, escrito por alguém que deseja esquecer recordações dolorosas. Segundo quem a escreveu, para esquecer deve-se aceitar os fatos, perdoar, até que seja possível lembrar-se com menor frequência e sem emoções, algo que só o tempo e um tipo de “entendimento desapaixonado” poderiam proporcionar. Supondo que a partir disto seria possível olhar para a lembrança como se olha para uma imagem externa e indiferente, sem emoção.

Este desejo de esquecimento não é incomum, pelo contrário, ele passa pelo imaginário de todos aqueles que um dia já vivenciaram algo doloroso. É um desejo natural: se algo nos faz sofrer, que seja então “engavetado” em um canto inacessível de nosso mundo psíquico, esquecido. Que lá fique e não mais incomode!

Basta, porém, um pouco de reflexão para que a seguinte pergunta nos ocorra: É possível que este conteúdo esquecido deixe de existir e produzir efeitos sobre o indivíduo? Antes de respondê-la, precisamos pensar um pouco mais sobre o esquecimento, o que acontece com os conteúdos de nossa mente que ameaçam causar sofrimento.

Embora seja comum pensar no esquecimento como algo de caráter passivo, que acontece com o passar do tempo e sem grande participação do indivíduo, a etiologia da palavra esquecer demonstra que é exatamente o contrário, tornando clara sua conotação de atividade. Proveniente de ex-cadere (cair para fora), esquecer está sempre relacionado a ex-pulsar, ex-ilar ou ex-teriorizar um conteúdo. Denotando uma atividade psíquica, que como outra qualquer, requer esforço e investimento por parte do sujeito.

Este esforço para exercer esta atividade se dá devido ao desprazer – sofrimento – gerado por algum conteúdo psíquico que precisa ser retirado do alcance da consciência, exilado em uma porção do aparelho psíquico que Freud denominou inconsciente. Isto não acontece apenas com recordações; pensamentos, imagens e desejos ameaçadores são também repelidos e afastados da consciência, em uma tentativa de evitar que produzam grande desprazer. Para isto nosso aparelho psíquico faz uso de um processo chamado recalcamento – ou repressão – que garante que alguns conteúdos carregados de afeto mantenham-se inconscientes. Inconscientes sim, porém, permaneceriam indiferentes?

Segundo a Psicanálise as lembranças recalcadas, “esquecidas”, não estão simplesmente ausentes, nem tampouco são indiferentes pois, do seu lugar de não-dito, exercem seu poder, gerando também sofrimento ao indivíduo. Vale lembrar também que o total recalcamento de uma memória só é provável em situações realmente traumáticas, exigindo grande trabalho mental para que seja mantida inconsciente. Em geral, as lembranças dolorosas permanecem em um estado latente, mantendo inconscientes os fragmentos mais carregados de afeto; como, por exemplo, a carga sentimental vivenciada no momento ou uma parte específico do que foi dito.

Portanto, a ação sugerida pelo autor da frase de nosso título – Ah, se fosse possível esquecer – que sugere tornar um conteúdo psíquico “neutro” para que seja rememorado sem emoções, seria uma tentativa de trabalho para que a carga afetiva vinculada a uma recordação possa ser “escondida” em outro lugar, distante da consciência. Porém, é exatamente este ilegítimo afastamento que proporciona que tal conteúdo permaneça imutável no inconsciente, longe do conhecimento e da atuação consciente do sujeito, agindo sobre este de forma indireta, possibilitando que os mais variados sintomas se manifestem inicialmente sem ter relação com o conteúdo original, mas que no contexto de uma análise se mostram muitas vezes vinculados àquelas lembranças “esquecidas” .

O trabalho realizado em um processo de análise compreende exatamente possibilitar que estes conteúdos sejam assimilados pelo sujeito, admitidos em sua história, permitindo que o paciente aproprie-se daquilo que fazia parte de si, mas que o recalque defensivamente mantinha à distância, em uma tentativa limitada para evitar o sofrimento. Este trabalho só é possível através da paulatina desconstrução destes movimentos defensivos de recusa e repressão. Não atuando para modificar o conteúdo que estava reprimido, mas sim o sujeito, que passa a ser agente ativo em sua história. Esquecendo, mas não no sentido de extrair para tornar uma imagem sem sentimentos, e sim de tomar posse daquilo que sempre foi seu com toda a carga de sentimentos que merece, mas para a qual o indivíduo agora está pronto, silenciando seus fantasmas.

Para saber mais:
Freud, S. Recordar, Repetir e Elaborar (1914).
Freud, S. O Recalque (1915).
Mezan, R. A Sombra de Don Juan (1993).

A Formação do Analista

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Falar sobre a formação do analista é esbarrar, inevitavelmente, em algumas questões fundamentais para que se possa pensar em como deveria ser instituída a formação daquele que deseja ter como profissão a psicanálise, ou seja, deseja ser um analista. Esta discussão se faz necessária não apenas por um simples exercício teórico, pois há uma questão prática, legal, envolvida a partir do momento que se tenta instituir a prática como profissão regulamentada pelo Estado. Em 2010 um projeto de lei tramitava no congresso com o intuito de incluir a profissão de analista, que neste caso estaria incluída em um grande “pacote misto” de terapias que seriam regulamentadas por uma federação nacional das terapias (FENATE), neste “pacote” estariam as atividades de acupuntura, homeopatia, terapia floral, fitoterapia, psicanálise, psicoterapia, tai-chi-chuan, doin, auriculoterapia, entre outras (LIMA, 2009).

Portanto, é imprescindível uma discussão acerca do que deve contemplar a formação de um analista, pois ao abster-se da discussão, corre-se o risco de que sejam impostos métodos de avaliação, ou mesmo de formação que nada têm da essência da psicanálise e que não contemplam suas singularidades.  Neste sentido, o que poderia ser uma formação para que alguém seja permitido dizer-se analista, e quem poderia determinar isto, o estado, alguma instituição ou o próprio sujeito?

Respeitando o fato de ser outro contexto histórico, é possível recorrer a Freud, que trata  deste assunto em seu artigo A Questão da Análise Leiga de 1926. Texto no qual se pode observar a opinião de Freud em relação a fazer uma correlação entre a capacidade de ser analista e uma formação universitária específica como Medicina, e também Psicologia se fosse nos dias de hoje, pois à época de Freud esta ainda não havia sido instituída como profissão. Neste texto Freud demonstra a opinião de que o saber com o qual trabalha o analista estaria além da formação acadêmica, além daquilo que se poderia apreender exclusivamente em uma universidade.

Tendo isto em vista, pode-se pensar que, por mais que uma graduação, ou pós-graduação possam ensinar (usando aqui um verbo diferente de transmitir) sobre a teoria psicanalítica, os funcionamentos meta-psicológicos e mesmo sobre a técnica criada pro Freud, não são suficientes para formar um analista. Este raciocínio pode ser estendido para a própria direção do tratamento, pois as diferentes formações na área de saúde, como psicologia ou medicina, têm também as suas especificidades, suas formas de entender fenômenos como o sintoma psíquico, o sintoma físico e mesmo a relação corporal/mental, que podem estar mais próximas de um modelo técnico que visa um ideal de funcionamento psíquico/comportamental  que demonstram  pouca relação com a direção de uma análise ou mesmo com o conceito de sintoma dentro das formulações de Freudo. Para diferentes áreas da saúde, mesmo um conceito epistemológico fundamental como o corpo, principalmente quando se trata de um visão mais fisiologista em relação a este,  terão pouca proximidade com o corpo pulsional da psicanálise, um corpo permeado pelos desejos do inconsciente, assim como pela estrutura da fala. Ou seja, tais formações acadêmicas não garantem que aquilo que estes profissionais fazem seja  que se espera de um analista.

É neste sentido que talvez seja possível questionar se a prática do psicanalista pode ser passível de regulamentação. Pois, se este for o caso, qual seria o critério? A formação acadêmica, um exame técnico após a finalização do curso que avaliaria os conhecimentos teóricos do candidato ou as normas das próprias instituições de Psicanálise? E se a melhor resposta fosse a última opção, haveria outro problema, pois são várias instituições com suas próprias regras, portanto, de qual delas seira a prioridade da IPA, das escolas francesas, inglesas, ou norte-americanas ? Ou então, cada escola teria seu critério e forneceria uma “chancela” para o profissional?

No outro oposto da equação teríamos a possibilidade de nenhuma regulamentação. Neste caso aquele que queira trabalhar com esta disciplina poderia mergulhar nas profundas águas do próprio inconsciente, estudar a teoria e fazer uma supervisão ou análise de controle, conforme as tendência da escola da qual se aproximar. Mas, neste caso, quem garantiria os profissionais que o atenderiam nesta sua construção profissional? Ou mesmo, o que garantiria que qualquer um não poderia auto-intitular analista sem ter percorrido o caminho do tripé da formação? As próprias regras do “mercado”?

Neste ponto, pode-se perceber que algumas destas perguntas já contém suas próprias respostas, pelo menos no que diz respeito à forma que poderia se esperar de uma formação, e talvez esta mesma forma tenha alguma garantia de que este processo direciona o candidato a ter algo de analista em algum ponto, ou à desistir da empreitada. Talvez, isto seja um pequeno delírio pessoal, mas parece que aquilo que é conhecido como tripé  – que consistiria no estudo da teoria, na análise pessoal (experiência subjetiva com o inconsciente) e na supervisão dos casos atendidos pelo candidato – possa acrescentar alguma esperança ao processo. Pois, espera-se que em algum momento o desejo de tornar-se analista seja conteúdo de trabalho de sua própria análise, assim como o estudo poderia levantar questões sobre a possibilidade de atuar com aqueles conceitos, e este trabalho que começa primeiramente com o esforço para compreendê-los. Acrescenta-se a isto a experiência de atender a queixa de outro e conseguir utilizar tanto a experiência pessoal – do analista – com a análise, quanto o estudo teórico para atuar. Parafraseando um dos excelentes personagens de Goethe: “É em vão que se vagueia de ciência em ciência: cada um aprende somente aquilo que pode aprender” (Mefistófeles – em Fausto).

Estas dificuldades inerentes da própria prática do psicanalista já podem ser uma espécie de avaliação que geraria uma “linha de corte” natural. Acrescentando que talvez o próprio “mercado” possa fazer também esta função, tendo em vista que um mau direcionamento não seria de grande ajuda para manter-se como profissional[1]. Mas, esta sem dúvida não é uma equação perfeita, assim como também não são as propostas de regulamentação vigentes. Corre-se aqui o mesmo risco que acreditavam correr os antigos navegadores gregos: Quando navegavam muito próximos a uma das bordas do mundo eram ameaçados pelo monstro Cila, mas se tentassem se afastar demais deste, corriam o risco de aproximar da outra extremidade e cair nas garras de outro monstro, Caríbdis. Portanto, ao se navegar entre Cila e Caríbdis, é aconselhável não recorrer aos extremos.

Assim, na questão da formação do analista, o tripé acena como esperança, tendo em vista que é em essência comum às diferentes escolas de psicanálise, e  mantém em sua base a experiência com o próprio inconsciente, pois é esta experiência que pode não ser garantia para que se faça um analista, mas é sem dúvida, pré-requisito.

Não há garantias, só a do desejo…

Referência consultada:

  •  LIMA,A. Projeto de lei 64/2009.

[1] Isto não levando em conta a possibilidade de um Darwinismo social às avessas como mostrado no divertido filme Idiotopia; uma comédia de divertimento fácil, mas que tem uma proposta de fundo muito interessante, pois o autor extrapola o raciocínio de que em uma sociedade onde os mais bem sucedidos socialmente não são os intelectualmente mais capazes a “seleção social” levaria a um futuro no qual o mundo seria dominado por aqueles que conseguissem entreter as massas e enriquecer com isto, levando a uma seleção subvertida que resultaria em uma sociedade bem pouco capacitada para resolver até os problemas mais simples do cotidiano.

Automatismos Modernos, O Estranho e os Zumbis:

Cambaleantes, famintos por carne humana e sem qualquer resquício de humanidade ou memória de suas antigas vidas. São estas as características deste personagem imaginário que recentemente passou a protagonizar os enredos a terem sucesso de público na literatura, cinema, jogos eletrônicos e televisão. Para aqueles que têm acompanhado as produções atuais destas mídias, fica fácil perceber a estranha presença dos zumbis.

A influência parece ser tanta que, mesmo na literatura medieval, onde seria difícil imaginar um zumbi, deu-se um jeito de inseri-lo afim, é claro, de satisfazer a maior fatia possível do mercado de tendências. Como nos romances épicos de George R. R. Martin – A Game of Thrones – nos quais os mortos retornam para caçar os vivos durante a noite. Ainda que esta inserção pareça forçada, o autor cede à exigência de que, se a meta é o sucesso de vendas, os mortos-vivos têm que estar presentes na trama.

Seriam estas criaturas resultado deste começo de século? Aqui faz-se necessário um breve levantamento histórico.

A presença dos zumbis ganhou força em filmes de horror dos anos 80, porém já em 1839 há um interessante conto de Edgar Allan Poe (The Fall of the House of Usher), considerado o pai dos gêneros do suspense e horror, que retrata uma situação muito similar, levantando a possibilidade de que os zumbis já “existem” há algum tempo.

Esta criatura que ressurge do mundo dos mortos para alimentar-se de carne humana está presente na mitologia de variados locais como Europa, Ásia e África. Sua raiz histórica pode remontar à narrativas de mais de quatro mil anos, como na epopeia de Gilgamesh, na qual a deusa Ishtar ameaça abrir os portões do submundo para que os mortos venham alimentar-se da carne dos vivos (PLATTS, 2013). Porém, há algum consenso de que a invasão midiática dos zumbis se deu pelo intermédio das expedições militares norte-americanas ao Haiti, iniciada em 1915, onde a apropriação da figura folclórica do povo haitianos seria de um parente, já morto, que andaria descerebrado pelas ruas (Ibid.)

Sempre que uma produção humana ganha uma forte adesão e perdura por gerações, como têm se mostrado os zumbis e suas variantes, é possível interrogar o que desperta tamanho fascínio. A exemplo do psicanalista Bruno Battelheim com as histórias infantis e de Freud com obras da literatura, um possível caminho é interrogar o que na vida psíquica dos indivíduos estas produções podem estar integrando. Sob esta perspectiva, algumas questões podem ser levantadas.

Uma forma de pensar este fenômeno utilizando o método psicanalítico é interpretar aquilo que expõe além da impressão inicial. Ou seja, dar um “passo” acima do discurso diretamente exposto. Embora vários fatores possam emergir deste tipo de análise, para este ensaio serão levantadas duas questões que parecem destacar-se. A primeira diz respeito a algo que se move de forma automática, impulsionado pela fome, sem pensar: um autômato. Acrescenta-se a isto a representação de um corpo humano, de carne e ossos, mas que já não é vivo internamente, não tem memória, não tem julgamento nem cultura e, portanto, não pode mais ser considerado humano.

Freud, em 1919, escreve O Estranho, trabalho no qual faz uma analogia entre a literatura e personagens e situações capazes de fascinar por sua estranheza, por causar inquietação. Como isto fascina tanto no sentido do estranho, aquilo que nos é Unheimlich (estranho, o título do texto), mas também atrai por manifestar algo que obscuramente move-se no interior psíquico de todos, algo de familiar, algo de Heimlich (a mesma raiz da palavra estranho em alemão serve para familiar). Neste texto, o pai da Psicanálise analisa também, dentre outros personagens, a figura do autômato que assim como os zumbis causariam inquietação também pela dúvida em relação à sua humanidade, uma cópia teoricamente vazia.

Pensando sobre este aspecto, o zumbi parece pertencer à categoria de autômato, assim como também daquele que fascina por trazer aquilo que estaria nas sombras do ser, mostrando algo de seus desejos encobertos. E quais desejos poderiam ser estes?

É interessante pensar que é em algumas produções culturais que desejos proibidos poderiam ser atuados de formas simbolizadas ou, no mínimo, seguras para o indivíduo. Pensando no zumbi como um ser humano, mas que por algum motivo o deixa de ser, o grande mote destas produções está em matar um semelhante – que se assemelha a um humano mas, neste caso, não é – sem as consequências que isto teria: poder matar sem que seja um ato de assassinar. No caso das histórias de zumbis, este desejo poderia ter sua catarse escapando de forma segura às punições internas do superego. Mata-se o simulacro, realiza simbólica e parcialmente um desejo e escapa do risco de qualquer punição.

A própria noção de autômato, pensado como aquele que age sem uma intermediação do pensamento, talvez tenha alguma relação com o indivíduo, pois distante de seu próprio agir, alienado de si, anestesiado de seu próprio mundo interno e que deseja apenas atuar no mundo em busca da satisfação. O filósofo alemão Theodor Adorno usa o termo “máscara mortuária” para definir o sujeito alienado de si, que perambula pela vida, de forma análoga ao que presenciou em campos de concentração nazistas quando o indivíduo se comportava como um morto-vivo até se agarrar à cerca elétrica para morrer; desta forma eles sabiam de antemão que o indivíduo iria para a cerca. É fácil uma analogia ao sujeito alienado de si, que não vai diretamente para a cerca, mas perambula pela vida como um morto-vivo, um autômato.

Portanto além da catarse de desejos e do estranhamento causado por algo de familiar oculto nestas fantasias, o apocalipse zumbi venha denunciar algo sobre o modo de vida da atualidade. E nada mais psicanalítico do que pensar que é a escuta diferenciada do analista que pode oferecer uma saída a esta alienação, ao desejo não dito que compulsivamente se repete, para que talvez se possa agir menos de forma automática e mais de forma integrada.

* Artigo publicado originalmente no jornal Psicologia em Foco (Julho de 2012), disponível em: http://www.grupopsicologiaemfoco.com.br/media/uploads/jornais/Psicologia_em_Foco_-_FINAL.pdf

Para saber mais:

  • Adorno, T. A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar: 1944/1985.
  • Freud, S. O Estranho. São Paulo, Companhia das Letras: 1919/2011.
  • Freud, S. Totem e Tabu. Rio de Janeiro, Imago: 1913/2006.
  • LUCKHURST, R. Zombies: A Cultural History. Londres: Reaktion Books Ltd, 2015.
  • PLATTS, T. K. Locating Zombies in the Sociology of Popular Culture. Sociology Compass, v. 7, n. 4, p. 47–560, 2013.
  • POE, E. A. The Cpllected Works of Edgar Allan Poe. Londres: Wordsworth Library Collection, 2009.

     

Os Games e o Virtual: O que está em Jogo?

Recentemente tenho recebido algumas perguntas em relação a jogos de videogame e computador com os quais crianças, adolescentes e mesmo adultos vêm dedicando cada vez maior quantidade de tempo. Por esta razão, e também por acreditar que seja um fenômeno importante, tentarei em algumas linhas abordar o tema.

Os jogos e sua realidade hoje:

De acordo com a União internacional de telecomunicações[1] no início de 2010 estimou-se que mais de 479 milhões de pessoas em todo o mundo utilizavam algum serviço de acesso a dados da internet, o que equivale a um aumento de 445% em relação ao ano 2000[2]. No início de 2010 os jogos online tomaram a posição dos correios eletrônicos como segunda utilização mais comum deste contingente, ficando atrás apenas dos portais de relacionamento – segundo pesquisa publicada pela Nielsen Company[3].

As novidades na área dos jogos têm sido constantes, criam-se jogos cada vez mais realistas em termos de imagem e som, nos quais o jogador deve interagir com uma quantidade enorme de recursos de jogabilidade, culminando mais recentemente em games com leitores de movimento corporal, dispensando em parte – ou totalmente – o uso de controles e botões.

Um dos segmentos de maior crescimento nesta indústria são os jogos online para grandes massas de jogadores, conhecidos como MMOMassively Multiplayer Online – sendo World of Warcraft o jogo mais popular com cerca de 12 milhões de assinantes em todo o mundo. Diferente dos jogos tradicionais, os MMOs possibilitam que centenas de jogadores se conectem através de um servidor central para jogarem ao mesmo tempo, sem um destino pré-definido e no mesmo “mundo virtual”.

Pode-se falar em mundos virtuais, pois estes são contextualizados de acordo com cada jogo, tendo sua própria economia, raças, profissões, sistema de transportes, redes sociais, uma história própria, além de várias outras possibilidades que os tornam atrativos de jogar e cada vez mais complexos.
Embora os consoles de videogame estejam convergindo para os jogos online, em sua maioria estes ainda precisam de um computador ligado à internet como principal suporte. Alguns destes jogos possibilitam reunir centenas de jogadores em uma mesma rodada.

Assim, podemos pensar em algumas ideias com relação a estes jogos, nossa cultura e os jogadores como indivíduos.

 Por que jogamos e o que está em jogo?

Sempre que há uma grande adesão cultural em relação a alguma atividade, podemos voltar nossa atenção para o que nesta atividade “fisga” o indivíduo, ou quais processos psíquicos estão ali envolvidos. Com os jogos não seria diferente, tendo em vista a grande aceitação do público fica claro que não se trata de algo de menor importância.

O que se tem notado é que entre uma enorme variedade de títulos que esta milionária indústria tem criado, os jogos mais vendidos envolvem algum tipo de enfrentamento de inimigos, seja de forma mais realista e bélica, ou mais infantil. Portanto, lendo o jogo como um texto, é possível dizer que estes jogos têm em seu pano de fundo alguma relação com a agressividade. Alguns utilizam esta ideia de forma direta, como os jogos de guerra, enquanto outros o fazem de forma lúdica, deixando a agressividade fluir para figuras de monstrinhos – por exemplo, nas tartarugas mal humoradas do jogo Mario.

Isto indicaria ser necessário um ambiente virtual para dar vazão à alguma agressividade? Talvez os processos envolvidos não sejam tão simples assim, mas em seu famoso ensaio O Mal Estar na Civilização (1930), o fundador da Psicanálise nos permite traçar algumas possibilidades.

Neste texto de 1930 Freud discorre sobre a dicotomia da aquisição/manutenção da felicidade e do processo civilizatório, considerando que a mesma civilização que nasceu da necessidade de evitar as fontes de sofrimento, acaba sendo responsável pela frustração do indivíduo. O processo civilizatório tem o intuito de “proteger os homens contra a natureza e ajustar os seus relacionamentos mútuos” (FREUD, 1930), ou seja, proteger a sociedade contra os processos pulsionais (ou instintos) e regular nossos relacionamentos sociais, a fim de que estes não estejam sujeitos a uma vontade, ou desejo arbitrário. Porém, esta própria civilização diminui a liberdade, já que o próprio conceito exige restrições e a justiça exige que ninguém fuja a estas restrições, que ninguém fuja à renúncia aos instintos; é exatamente esta renúncia um dos fatores de frustração, sendo que pressupõe a não satisfação de pulsões poderosas, gerando uma frustração social.

Dentre as renúncias exigidas pela vida social, a satisfação sexual pode ser destacada em paralelo à agressividade. A necessidade de uma adaptação social e bom relacionamento – pelo menos com o grupo próximo – exigiu do Homem um grande controle das pulsões agressivas. Em vista das necessidades impostas pelo princípio do prazer, pela agressividade afigurável no homem, o indivíduo encontra-se dividido, descontente em um limbo entre suas vontades de satisfação individual e as exigências sociais impostas pela civilização.

Desta forma, podemos pensar em vários exemplos de atividades humanas nas quais a agressividade, impossibilitada da passagem ao ato, tem um destino mais aceitável pelas imposições da civilização. Talvez, uma parte da grande atração destes jogos seja o fato de possibilitarem que uma violência simulada (ou real no caso de prejudicar outros jogadores) seja praticada sem que isto seja um atentado às leis e regras sociais.

Se esta é uma das motivações para o ato de jogar, então poder-se-ia concluir que não deveria haver preocupação quanto a isto? Acredito que não seja tão simples assim.

Algumas pesquisas mostram que adolescentes passam aproximadamente 14 horas por semana envolvidos em algum tipo de jogo eletrônico. Porém, a experiência na clínica com adolescentes indica que este número é provavelmente maior; mesmo não falando de casos específicos onde o tratamento estaria ligado ao jogo, mas sim de adolescentes que têm estes jogos apenas como uma atividade comum em seu dia-a-dia superando duas horas diárias por larga margem.

Como toda atividade constante e regularmente praticada traz algum efeito sobre aquele que a pratica, podemos pensar em quais efeitos, ou quais repercussões, para o Sujeito que estes jogos podem facilitar. Lembrando que, embora o número de adultos que se dedicam a estes jogos seja significativo, o grande público desta atividade está ainda em fases de formação, de desenvolvimento e, portanto, mais vulneráveis em seu processo de tornar-se indivíduo.

Alguns autores, entre eles o filósofo alemão Christoph Türcke, defendem que a inundação de estímulos provocados pela torrente de imagens destas mídias exercita algo que pode ser chamado de uma “distração concentrada”. Embora o termo seja ambíguo, á na verdade cheio de sentido, pois denota que enquanto uma imagem singular promoveria a atenção focada, bilhões destas imagens fazem o contrário mantendo o indivíduo concentrado neste turbilhão, sendo porém mantido distraído de todo o resto por longo período.

Portanto, o grande “treinamento” facilitado por estes longos períodos resultariam, como facilmente se poderia pensar, não em uma grande capacidade de concentração e processamento, mas sim em uma incapacitação para o pensamento complexo e a reflexão, corroborando a preocupação do sociólogo Zigmunt Bauman – autor do livro Modernidade Líquida – quando diz que na era da informação arriscamos um neo-analfabetismo.

Porém, tão ou mais preocupante, é que esta incapacitação ao ato de refletir pode estar colaborando para um afastamento cada vez maior do indivíduo da sensibilidade e da possibilidade para enfrentar suas questões e frustrações. Parafraseando o C. Türcke: “A repetição de imagens que vivemos é uma forma de não lidar com a dor, com o que achamos que é terrível”. Um efeito comparado ao das drogas em seus usuários.

Paralelamente, algo que a mídia tem frequentemente demonstrado quando fala de jogos, é um grande medo em relação à possibilidade de fuga da realidade por parte do jogador, ou o medo de que os jovens comecem a repetir os comportamentos violentos dos jogos com seus colegas. Contudo, isto não tem se mostrado verdade e apenas uma pequena parcela corre este risco em função de processos patológicos que dificultariam estas pessoas a diferenciarem aquilo que é fantasioso (o jogo) de sua vida real. Nestes casos a patologia não está relacionada ao jogo, mas sim a uma estrutura prévia do indivíduo.

A grande violência dos jogos não está neste tipo de risco, mas sim na alienação que o jogo pode causar e nas dificuldades de desenvolvimento de algumas atividades mentais, principalmente na capacidade de se relacionar.

Uma atividade de lazer, de distração periódica, é certamente bem vinda e necessária, mas entendo que várias horas de prática diária devem nos chamar a atenção para o que, literalmente, está em jogo. Os jogos e a internet não são o problema, mas sim a forma sem limites como estes são utilizados e sua aceitação incondicional por parte de nossa sociedade.


[1] Agência da ONU especializada em tecnologia de comunicações (http://www.itu.int/en/pages/default.aspx)

[2] Estes dados levam em conta apenas os serviços de banda larga, considerando-se que o número possa ser muito maior se computadas as conexões por telefone, ainda existentes em países menos desenvolvidos.

[3] Empresa especializada em estatísticas de utilização da internet e meios virtuais (http://blog.nielsen.com/nielsenwire/)

O Sucesso de Harry Potter e as Histórias Infantis

Com o final da história do pequeno bruxo, que se estendeu por mais de uma década, fica claro o grande sucesso desta trama. Sucesso decorrente da atenção não apenas por parte das crianças, mas também de diferentes gerações. Enquanto adultos acompanharam o enredo com interesse elevado, viram os personagens crescerem acompanhados de boa parte de sua plateia.

Outro fator que destaca a importância da série foi a forma como esta ganhou projeção mundial. Pois, diferente da grande maioria das produções atuais, seu reconhecimento público não resultou inicialmente do investimento de grandes editoras e estúdios, mas sim, conquistou sua projeção pelas vozes de seus pequenos leitores, para só depois ganhar o mundo através dos enormes mecanismos da indústria do entretenimento. E tudo isto, partindo de uma geração acusada de ser desinteressada pela leitura.

Somando estes fatores – tempo decorrido de seu início, um romance que desperta o interesse pela leitura e o reconhecimento partindo do público, além de vários outros que poderiam ser citados – fica a sensação de que há realmente algo nesta história que cativou o coletivo de forma singular.

Não é de hoje que histórias infantis ganham grande projeção entre os pequenos, sendo que alguns clássicos perduram atravessando gerações por séculos, inicialmente pela transmissão oral, para só depois a escrita, até alcançarem as diferentes mídias de hoje. Alguns exemplos são os famosos contos de Charles Perrault e dos irmãos Grimm.

Diante disto, podemos levantar o questionamento: o que tem estas histórias que fascinam tanto, levando algumas a continuar por séculos entre as prediletas das crianças?

As histórias maravilhosas:

 

Não pretendendo uma resposta definitiva, mas sim uma discussão sobre o tema, podemos pensar no que estas histórias integram à vida psíquica daqueles que tanto deslumbram.

Historicamente, as histórias infantis surgiram a partir dos contos de tradição oral camponesa do século XVIII – que a princípio não eram direcionados especificamente à criança[1] – mas foi apenas no séc. XIX, com a gênese da família nuclear e a atenção à infância como fase de desenvolvimento, que houve a infantilização destas narrativas tradicionais sendo então transformadas nos atuais contos de fadas.

Por definição, um conto de fadas é uma história que apresenta elementos extraordinários, surpreendentes, encantadores, não precisando necessariamente haver fadas em seu contexto. Neste tipo de conto o elemento fantástico é essencial por garantir que se trata de outra dimensão, de outro mundo, com possibilidades e lógicas diferentes do real.

Alguns destes contos são, reconhecidamente, valiosos instrumentos para um desenvolvimento psíquico saudável. Como a criança está em processo de delimitação das fronteiras entre o real e o imaginário, entre o mundo externo e o pensamento –fronteiras estabelecidas em parte pela repressão das representações inconscientes – todas as possibilidades da linguagem lhe interessam para compor o repertório imaginário de que ela necessita para “elaborar os enigmas do mundo e de desejos” (Parafraseando a Psicanalista Maria Rita Kehl).

Em seu livro, fadas no divã, Diana e Mário Corso indicam que a forma psíquica do uso dos contos de fadas pelas crianças, é similar à forma e função em que o mito era usado em sociedades antigas, ou seja, possibilitando ao indivíduo que fantasiosamente adentre a trama e encaixe suas questões nos esquemas interpretativos disponíveis para o mito (neste caso o conto de fadas). De forma mais clara, podemos dizer que o indivíduo seleciona fragmentos, unindo-os a sua própria maneira, de forma a construir uma explicação para assuntos que os questionam.

Os mitos, assim como os contos de fada, estão repletos de material inconsciente, reprimido, subjacente em suas tramas e personagens. As mensagens dos contos de fadas são transmitidas desde a mente consciente até a inconsciente, e como lidam com problemas humanos universais, estas histórias falam ao ego em germinação, encorajando seu desenvolvimento enquanto também aliviam tensões inconscientes, ou seja, demonstram caminhos pelos quais os desejos Inconscientes podem ser parcialmente satisfeitos com o mínimo de conflito entre as requisições do Eu[2] e da consciência moral (Superego), ambos ainda em desenvolvimento.

Para que possa superar as dificuldades psicológicas advindas do crescimento – como a superação das decepções narcísicas, dilemas edípicos, rivalidades fraternas, a sexualidade, o abandono de dependências infantis e, finalmente, sua individualidade – a criança precisa elaborar estes conflitos inconscientes. Este trabalho de elaboração não pode ser atingido de forma racional, mas familiarizando-se com este eu inconsciente, através de devaneios prolongados, fantasiando sobre elementos adequados da história em resposta às pressões inconscientes.

Harry Potter:

        

Uma obra extensa como esta dá margem a uma quantidade sem fim de possibilidades interpretativas. Tendo isto em vista, não pretendo desconstruir a obra em um texto de poucas palavras, mas sim levantar algumas possibilidades de reflexão sobre alguns temas comuns às histórias clássicas que se mostram presentes na história do bruxinho.

Embora alguns críticos tenham sugerido que o romance de J.K. Rowling pudesse induzir seus leitores a ater-se à fantasia, ficando “presos” a ela, vimos acima que isto não é verdade, pois o fantasiar e a ficção fazem parte de certas etapas do desenvolvimento do Sujeito e podem, se bem conduzidos, auxiliar na elaboração de alguns conflitos típicos da infância ou, como neste caso, da adolescência.

A história do bruxinho trata de temas comuns a todos adolescentes e pré-adolescentes, como a amizade, coragem, ambição, assim como dilemas éticos e sociais que permeiam o mundo dos bruxos – como, por exemplo, a discriminação dos “trouxas” e as constantes escolhas que Harry tem que fazer entre o caminho mais fácil, e o certo.

Outro fator são os heróis imperfeitos, e o caráter complexo de alguns, levantando a necessidade de maiores ponderações por parte do protagonista. Pois mesmo Dumbledore, uma pessoa extraordinária, se revela portador de falhas e de uma triste história em sua juventude, afastando sua imagem de ideal inalcançável para algo mais próximo do real; não muito diferente do que acontece com as figuras paterna e materna conforme a criança cresce. Julgamentos precipitados também são induzidos pelo caráter de Severus Snape, que ao final se revela o grande protetor de Potter e um homem apaixonado e devotado.

Parece-me bastante nítida a relação entre a figura de Voldemort e um resquício de representação da figura paterna – diluída na história entre vários personagens – com a qual Potter precisa acertar algumas contas. Voldemort assassinou os pais de Harry, mas é uma presença constante em sua vida, e divide com ele várias coincidências (como a varinha e a capacidade de falar com ofídios) culminando na necessidade de que algo em Harry seja eliminado para que o mal pereça. Isto me parece uma facilitação para lidar com os sentimentos ambíguos da criança em relação ao pai (conflitos edípicos), pois esta diluição em várias figuras paternas sendo vários deles bons, protetores, amorosos e corretos e um oposto e maligno que deve ser eliminado. Este tipo de conflito é uma constante nas interpretações dos contos clássicos feitas por Bruno Bettelheim em seu livro A Psicanálise dos Contos de Fadas.

Embora a história de Harry seja ainda recente comparada com alguns clássicos, parece reunir alguns temas universais, além de uma trama interessante e dinâmica, pois como já nos disse Maria Rita Kehl: “A sobrevivência dos contos reside em sua capacidade de simbolizar e resolver conflitos psíquicos” e, para isto, os contos de Rowling parecem demonstrar alguma capacidade. Mas, só o tempo poderá dizer se a saga do pequeno bruxo perdurará por gerações.


[1] A história original da Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, não tinha um final nada parecido com a versão de Perrault que conhecemos, pois o lobo devorava a todos, inclusive a protagonista.

[2] Eu ou Ego: Polo defensivo da personalidade, encarregado dos interesses da totalidade do sujeito, mas não totalmente autônomo.

Algumas questões sobre a medicalização na infância: Ritalina.

O estimulante metilfenidato, conhecido por Ritalina (ou Concerta), tem sido largamente utilizado como medicamento para transtornos relacionados à atenção e hiperatividade em crianças e adolescentes. Alguns dados em relação a necessidade de rever um alto número de diagnósticos de transtornos na infância nos incitam a levantar um sinal de alerta quanto à alto quantidade de prescrição deste fármaco, assim como de outros medicamentos psicoativos na infância.

Alguns questionamentos são necessários, principalmente ao se constatar a alarmante quantidade de diagnósticos que apontam a necessidade do uso da Ritalina (e mesmo de outros medicamentos psicoativos para crianças), assim como pesquisas que indicam a necessidade de reavaliação de um alarmante número de diagnósticos que podem ser imprecisos (que fique ressaltado, feitos por profissionais de diferentes especialidades tanto da Medicina quanto da Psicologia).

É comum na clínica o contato com crianças que foram medicadas mesmo quando exames neurológicos apontaram para o equilíbrio deste sistema, assim como não terem passado por qualquer levantamento de indícios comportamentais  que apontem a necessidade do psicofármaco (geralmente apenas o relato dos pais e de situações pontuais), sendo que em geral, nestes casos, o fator preponderante para a decisão pelo uso da medicação tem sido a demanda dos pais, ou da escola; o que obviamente não é adequado.

Abaixo está posto um vídeo produzido pela rede Globo News, com algumas entrevistas e uma fala da Dra. Moysés da Unicamp. Talvez alguns apontamentos no vídeo tenham sido radicalizados, mas acredito que possam ser uma saudável provocação para a reflexão sobre o tema.

Contribuem também para a discussão os seguintes artigos acadêmicos:

Segue o vídeo:

Globo Vídeos – Brasil é segundo maior consumidor mundial de ritalina