As ansiedades / É normal sentir ansiedade?

Você já se sentiu ansioso? Angustiado*? Acredite, isso pode ser um bom sinal: significa que você está vivo!images

É claro que existem níveis de ansiedade que podem não ser saudáveis – e é disso que falarei agora, tomando como base a Psicanálise, e várias indicações científicas atuais sobre o tema. Como vou simplificar alguns conceitos, no final deixarei indicações de leitura para quem for da área e/ou quiser saber mais sobre o assunto.

Sim, parece contraditório dizer que alguém está vivo se está se sentindo ansioso, mas na verdade, a ansiedade está a serviço da autoconservação. Basicamente, a ansiedade, é uma resposta normal, que o Ego (parte da nossa estrutura psíquica) dá a uma situação de perigo, que pode ser interna ou externa.

Portanto, uma ameaça externa é algo fácil de visualizar e entender, mas e no caso de uma ameaça interna, como isto seria? Para responder isto, precisamos pensar em algumas diferenças que nós, humanos, temos dos outros animais que conhecemos.

 

A capacidade Humana de perceber perigos reais e criar perigos simbólicos

O perigo pode ser algo muito real e externo a você, como um predador, ou então o resultado da atividade simbólica (exclusividade do animal humano) que, embora não seja um perigo real que está fisicamente na sua frente, é a possibilidade de que este perigo aconteça e todas as ligações simbólicas que o sujeito irá fazer singularmente de acordo com sua história, com todas as suas experiências de vida, conscientes ou inconscientes.

Se para os outros animais a resposta é mais direta: Presença real do perigo à medo (respostas fisiológicas) à ação (luta ou fuga). No animal humano, além da possibilidade de responder a uma ameaça fisicamente presente e comunicar sobre ela, a linguagem torna nosso processo de resposta muito mais complexo. Mas, aqui você deve estar pensando que sim, você sabe que outros animais também se comunicam. Isto é verdade, porém, a linguagem que conseguem desenvolver é apenas em relação direta ao que estão comunicando, ou seja, você pode ver um macaco sinalizando a presença de um leão, real, presente naquele momento, mas não desenvolvem atividades simbólicas abstratas. O que quer dizer que, certamente, não o verá sentado em sua posição de vigia do bando, falando sobre sua preocupação de que ele não seja um bom macaco e possa mostrar seu valor para os outros do bando caso venha a aparecer um leão, nem em conflito com seu papel social como vigia. Macaco é macaco. Leão é leão… Corra!

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O animal humano é atravessado pela fala (linguagem) de forma mais complexa, possibilitando que a palavra “leão”, possa ser uma infinidade de outras coisas. Desde um perigo real que exige trabalho físico, até um conjunto de símbolos coletivos que podem indicar força, virilidade em algumas culturas, a bandeira da casa dos Lanisters em GOT, ou então um indicador de algo vinculado a uma experiência pessoal, singular a cada um, como por exemplo um personagem de um desenho assistido durante a infância que traz diversas lembranças (Thundercats, Simba?!).

Ou seja, nossa linguagem nos permite criar uma infinidade de referentes diretos e indiretos a uma palavra, criar conceitos e abstrações dos mesmos, mas também nos possibilita planejar o futuro e lembrar do passado e com isto, claro, nos possibilita também que nos preocupemos com eles e com todas as possibilidades que desejamos ou tememos que aconteçam.

Podemos usar como exemplo de perigo simbólico, mais comum para nós que não vivemos entre leões, uma prova de faculdade. A possibilidade de você tirar uma nota baixa e reprovar é, de certa forma, um perigo, uma ameaça àquilo que você acredita que esperam de você, além de poder trazer prejuízos práticos no futuro, como uma reprovação. Portanto, pode ser motivo de ansiedade, embora a ameaça não seja real e esteja ela na sua frente, a prova é apenas uma parte de tudo aquilo que você considera ameaçador, neste caso possibilidades futuras e representações simbólicas; portanto, internos e simbólico.

Em casos onde há sintomas relacionados à ansiedade, ou esta mesma se apresenta de forma constante e desvinculada de contexto, existe ainda a possibilidade de ser um resultado de uma ameaça ainda mais “interna”, pois seria uma reação do Ego (a instância psíquica responsável pela sua noção de Eu, pelo menos da parte consciente) a um desejo ou pensamento que gera conflito. Um pensamento, um desejo que entra em conflito com sua visão de eu, mesmo inconsciente, gera ansiedade. Por exemplo, o desejo de matar um chefe muito chato, pode ser reprimido caso isto entre em conflito com a visão de boa pessoa que o desejante tem de si, gerando angústia. Claro, existem pensamentos muito mais conflitantes e que precisam ficar inconscientes para não gerar ainda mais ansiedade, mas falaremos mais sobre casos patológicos à frente.

Já um perigo físico, real, é mais fácil de imaginar por exemplo se pensarmos novamente em um leão à espreita. Não preciso dizer o tipo de prejuízo que um ataque de leão traria a você, certo?

Os dois tipos de perigo exigem que você tome uma atitude para, de alguma forma, encontrar uma solução e eliminar a fonte de ansiedade. Desviar o olhar e fingir que o problema não existe, como avestruz que “esconde” a cabeça no buraco, só traria problemas. Principalmente no caso de um leão à espreita.

De uma maneira ou de outra, os dois tipos de situação podem gerar uma resposta que seria um aumento significativo de atividade psíquica. Somado a isto, nosso Ego trabalha para manter um nível de energia psíquica constante, e quando alguma situação eleva demais esse nível, temos… ansiedade. O que nos leva ao próximo ponto, que é…

 

Ansiedade descontrolada

Em alguns dos exemplos acima, a ansiedade serve como um incentivo, um desconforto que incentiva você a agir. No caso da prova, uma boa atitude aproveitar a energia que te coloca em movimento para se preparar para prova, mas também compreender que é totalmente normal e esperado estar ansioso, além de reconhecer também que outras pessoas que farão a prova certamente também estarão ansiosas por mais que se esforcem para mostrar o contrário – você não está sozinho – mantendo assim a ansiedade em um nível que te motive a agir, mas não te atrapalhe na ação em si. No caso do leão, a solução óbvia seria fugir para um lugar seguro.

Há casos em que a ansiedade não tem uma motivação clara, ou é totalmente desproporcional em relação ao motivo causador (como por exemplo ter uma crise de pânico por causa de uma prova da faculdade).

A ansiedade patológica, não surge de uma maneira conveniente, ou adaptativa. Ela aparece de maneira inadequada, e gera a sensação para a pessoa que a sente de não ter motivação alguma. O que leva muitas pessoas a procurarem auxílio de medicamentos por entenderem que, se você não consegue apontar o motivo diretamente (como o leão, ou a prova), então o motivo não existe. Mas, é aqui que precisamos lembrar que como nossa linguagem funciona de forma complexa, um leão não necessariamente, é apenas um leão. Portanto, uma crise desproporcional de ansiedade pode ter gatilhos disparados inconscientes que aparentam não existir, mas aparecem de forma clara após um tratamento psicoterápico bem direcionado.

Nesses casos, o mais indicado seria buscar auxílio profissional de um psicólogo para descobrir causas “escondidas” ou trabalhar para retomar um nível “normal” de ansiedade. Não existe uma fórmula mágica para estes casos, o uso de medicamentos traz diversos efeitos indesejados, provavelmente piores do que a ansiedade em si, e a psicoterapia é um processo contínuo e progressivo (como “matar um leão por dia”) mas certamente recompensador no final, quando o leão simbólico não mais se apresenta como uma ameaça.

Nesta época do ano é muito comum nos sentirmos ansiosos, pensando nos desafios que o próximo ano poderá trazer. Espero que tenha ficado claro que é normal, até mesmo necessário, sentir ansiedade em algum grau – e que um profissional pode ajudar em caso de necessidade.

Referências:

  • Freud, S. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901).
  • Jerusalinsky, A. e Fendrik, S. O Livro negro da psicopatologia contemporânea (2011).
  • Freud, S. Novas conferências introdutórias à Psicanálise (1933).
*Ansiedade e angústia são duas palavras comumente utilizadas para o mesmo fim, definidas pelo dicionário por um grande mal-estar físico e psíquico, estando também ligadas a um sentimento de ameaça impreciso e indeterminado. Freud utilizava no alemão o temo Angst, que pode ser traduzido tanto por angústia, quanto medo, porém utilizaremos a palavra mais comum: Ansiedade.

A Normopatia Contemporânea

Vivemos uma época em que a patologização do comportamento chegou a um discurso extremo que se assemelha a uma espécie de “normopatia”, ou seja, uma extrema necessidade de definir a normalidade, o que é ou deixa de ser aceito pelos padrões funcionais da sociedade; criando como consequência o seu negativo, ou seja, a necessidade de classificar tudo que escapa desta norma definida pela ciência ou outras instituições como, obviamente, patológico… Doença a ser tratada. Tem sido assim com estados de humor, aparecendo aí as depressões e bipolaridades sendo diagnosticadas a qualquer sinal de desvio do “normal”*, e está sendo assim agora, com uma regulamentação que vem da esfera jurídica sobre um possível tratamento da homossexualidade.

Ora, se pensarmos em um ser no qual hipoteticamente possamos separar por completo o corpo fisiológico do “mental”, assim como tentou Descartes e ainda atentam tantas linhas de pensamento; talvez fosse realmente possível definir o que deveria ser um comportamento evolutivo, geneticamente definido e garantido por nossos instintos parece ser possível com nossos paralelos do restante do reino animal.

Porém, não podemos esquecer que, embora sejamos sim pertencentes ao reinos animal, somos um animal atravessado pela linguagem, fazendo com que nosso corpo instintivo (ou pulsional em algumas traduções de Freud, lá em 1915) não tenha um objeto determinado, estanque, quando falamos em relação à sexualidade e também em relação à outras vias de satisfação.

Isto faz com que sejamos, em nossa formação enquanto indivíduos, inicialmente abertos a todas as possibilidades de trilhamentos para esta satisfação instintiva, ou como definiu Freud, o ser humano em sua constituição é Polimorfo. Portanto, mesmo que venha a definir sua satisfação instintiva (ou pulsional) no formato heterossexual, existe em um segundo plano, mais ou menos reprimido por cada um, um resquício da possibilidade de satisfação homossexual. É aí que aparecem os moralizadores com sua irresistível necessidade de caçar ferrenhamente no outro, aquilo que o habita, mesmo que debaixo de muitas camadas.

Concluindo, se em uma ser no qual a satisfação instintiva é definida em seu amadurecimento, mas é em sua cerne polimorfa, mantando as antigas vias de satisfação como possíveis mesmo que reprimidas, ou direcionadas para pequenas fontes de prazer similares (sublimadas), então se falarmos em uma possibilidade do profissional da saúde aceitar a homossexualidade como passível de cura, ele precisa necessariamente aceitar também a heterossexualidade para o mesmo fim. Se, neste contexto, existir uma cura homossexual, pode-se pensar em uma cura heterossexual.

A Psicanálise entende que o sujeito não tem uma forma única e correta de funcionamento a ser definida, e imposta, pelo tratamento. Pelo contrário, entende que o tratamento em si é possibilitar que cada um possa lidar com sua forma própria de lidar com seus desejos. E sim, ela vai ter seus furos, dificuldades e sofrimentos em qualquer uma das possibilidades.

Quem sabe, ao invés de tentarmos desesperadamente “normalizar” o mundo, possamos aceitar cada vez mais as diferenças e entender que elas podem sim, gerar saídas muito criativas para esta arte tão complexa que é o viver.

*O que não implica na inexistência destes quadros, mas que o seus diagnóstico passou por um “afrouxamento” a ponto de qualquer desvio daquilo considerado como normal ser passível de tratamento baseado em medicamentos. Em geral a depressão, a bipolaridade e os quadros infantis relacionados à aprendizagem, passaram a ser medicados não apenas em casos agudos, na medida que todo desvio passou a ser considerado agudo…

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“Ah! Se fosse possível esquecer!”

A frase escolhida para o título deste artigo poderia ser um exemplo das queixas que rotineiramente são escutadas na clínica psicanalítica. Mas, não é esta sua origem: foi retirada de um relato disponível na internet, escrito por alguém que deseja esquecer recordações dolorosas. Segundo quem a escreveu, para esquecer deve-se aceitar os fatos, perdoar, até que seja possível lembrar-se com menor frequência e sem emoções, algo que só o tempo e um tipo de “entendimento desapaixonado” poderiam proporcionar. Supondo que a partir disto seria possível olhar para a lembrança como se olha para uma imagem externa e indiferente, sem emoção.

Este desejo de esquecimento não é incomum, pelo contrário, ele passa pelo imaginário de todos aqueles que um dia já vivenciaram algo doloroso. É um desejo natural: se algo nos faz sofrer, que seja então “engavetado” em um canto inacessível de nosso mundo psíquico, esquecido. Que lá fique e não mais incomode!

Basta, porém, um pouco de reflexão para que a seguinte pergunta nos ocorra: É possível que este conteúdo esquecido deixe de existir e produzir efeitos sobre o indivíduo? Antes de respondê-la, precisamos pensar um pouco mais sobre o esquecimento, o que acontece com os conteúdos de nossa mente que ameaçam causar sofrimento.

Embora seja comum pensar no esquecimento como algo de caráter passivo, que acontece com o passar do tempo e sem grande participação do indivíduo, a etiologia da palavra esquecer demonstra que é exatamente o contrário, tornando clara sua conotação de atividade. Proveniente de ex-cadere (cair para fora), esquecer está sempre relacionado a ex-pulsar, ex-ilar ou ex-teriorizar um conteúdo. Denotando uma atividade psíquica, que como outra qualquer, requer esforço e investimento por parte do sujeito.

Este esforço para exercer esta atividade se dá devido ao desprazer – sofrimento – gerado por algum conteúdo psíquico que precisa ser retirado do alcance da consciência, exilado em uma porção do aparelho psíquico que Freud denominou inconsciente. Isto não acontece apenas com recordações; pensamentos, imagens e desejos ameaçadores são também repelidos e afastados da consciência, em uma tentativa de evitar que produzam grande desprazer. Para isto nosso aparelho psíquico faz uso de um processo chamado recalcamento – ou repressão – que garante que alguns conteúdos carregados de afeto mantenham-se inconscientes. Inconscientes sim, porém, permaneceriam indiferentes?

Segundo a Psicanálise as lembranças recalcadas, “esquecidas”, não estão simplesmente ausentes, nem tampouco são indiferentes pois, do seu lugar de não-dito, exercem seu poder, gerando também sofrimento ao indivíduo. Vale lembrar também que o total recalcamento de uma memória só é provável em situações realmente traumáticas, exigindo grande trabalho mental para que seja mantida inconsciente. Em geral, as lembranças dolorosas permanecem em um estado latente, mantendo inconscientes os fragmentos mais carregados de afeto; como, por exemplo, a carga sentimental vivenciada no momento ou uma parte específico do que foi dito.

Portanto, a ação sugerida pelo autor da frase de nosso título – Ah, se fosse possível esquecer – que sugere tornar um conteúdo psíquico “neutro” para que seja rememorado sem emoções, seria uma tentativa de trabalho para que a carga afetiva vinculada a uma recordação possa ser “escondida” em outro lugar, distante da consciência. Porém, é exatamente este ilegítimo afastamento que proporciona que tal conteúdo permaneça imutável no inconsciente, longe do conhecimento e da atuação consciente do sujeito, agindo sobre este de forma indireta, possibilitando que os mais variados sintomas se manifestem inicialmente sem ter relação com o conteúdo original, mas que no contexto de uma análise se mostram muitas vezes vinculados àquelas lembranças “esquecidas” .

O trabalho realizado em um processo de análise compreende exatamente possibilitar que estes conteúdos sejam assimilados pelo sujeito, admitidos em sua história, permitindo que o paciente aproprie-se daquilo que fazia parte de si, mas que o recalque defensivamente mantinha à distância, em uma tentativa limitada para evitar o sofrimento. Este trabalho só é possível através da paulatina desconstrução destes movimentos defensivos de recusa e repressão. Não atuando para modificar o conteúdo que estava reprimido, mas sim o sujeito, que passa a ser agente ativo em sua história. Esquecendo, mas não no sentido de extrair para tornar uma imagem sem sentimentos, e sim de tomar posse daquilo que sempre foi seu com toda a carga de sentimentos que merece, mas para a qual o indivíduo agora está pronto, silenciando seus fantasmas.

Para saber mais:
Freud, S. Recordar, Repetir e Elaborar (1914).
Freud, S. O Recalque (1915).
Mezan, R. A Sombra de Don Juan (1993).

A Formação do Analista

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Falar sobre a formação do analista é esbarrar, inevitavelmente, em algumas questões fundamentais para que se possa pensar em como deveria ser instituída a formação daquele que deseja ter como profissão a psicanálise, ou seja, deseja ser um analista. Esta discussão se faz necessária não apenas por um simples exercício teórico, pois há uma questão prática, legal, envolvida a partir do momento que se tenta instituir a prática como profissão regulamentada pelo Estado. Em 2010 um projeto de lei tramitava no congresso com o intuito de incluir a profissão de analista, que neste caso estaria incluída em um grande “pacote misto” de terapias que seriam regulamentadas por uma federação nacional das terapias (FENATE), neste “pacote” estariam as atividades de acupuntura, homeopatia, terapia floral, fitoterapia, psicanálise, psicoterapia, tai-chi-chuan, doin, auriculoterapia, entre outras (LIMA, 2009).

Portanto, é imprescindível uma discussão acerca do que deve contemplar a formação de um analista, pois ao abster-se da discussão, corre-se o risco de que sejam impostos métodos de avaliação, ou mesmo de formação que nada têm da essência da psicanálise e que não contemplam suas singularidades.  Neste sentido, o que poderia ser uma formação para que alguém seja permitido dizer-se analista, e quem poderia determinar isto, o estado, alguma instituição ou o próprio sujeito?

Respeitando o fato de ser outro contexto histórico, é possível recorrer a Freud, que trata  deste assunto em seu artigo A Questão da Análise Leiga de 1926. Texto no qual se pode observar a opinião de Freud em relação a fazer uma correlação entre a capacidade de ser analista e uma formação universitária específica como Medicina, e também Psicologia se fosse nos dias de hoje, pois à época de Freud esta ainda não havia sido instituída como profissão. Neste texto Freud demonstra a opinião de que o saber com o qual trabalha o analista estaria além da formação acadêmica, além daquilo que se poderia apreender exclusivamente em uma universidade.

Tendo isto em vista, pode-se pensar que, por mais que uma graduação, ou pós-graduação possam ensinar (usando aqui um verbo diferente de transmitir) sobre a teoria psicanalítica, os funcionamentos meta-psicológicos e mesmo sobre a técnica criada pro Freud, não são suficientes para formar um analista. Este raciocínio pode ser estendido para a própria direção do tratamento, pois as diferentes formações na área de saúde, como psicologia ou medicina, têm também as suas especificidades, suas formas de entender fenômenos como o sintoma psíquico, o sintoma físico e mesmo a relação corporal/mental, que podem estar mais próximas de um modelo técnico que visa um ideal de funcionamento psíquico/comportamental  que demonstram  pouca relação com a direção de uma análise ou mesmo com o conceito de sintoma dentro das formulações de Freudo. Para diferentes áreas da saúde, mesmo um conceito epistemológico fundamental como o corpo, principalmente quando se trata de um visão mais fisiologista em relação a este,  terão pouca proximidade com o corpo pulsional da psicanálise, um corpo permeado pelos desejos do inconsciente, assim como pela estrutura da fala. Ou seja, tais formações acadêmicas não garantem que aquilo que estes profissionais fazem seja  que se espera de um analista.

É neste sentido que talvez seja possível questionar se a prática do psicanalista pode ser passível de regulamentação. Pois, se este for o caso, qual seria o critério? A formação acadêmica, um exame técnico após a finalização do curso que avaliaria os conhecimentos teóricos do candidato ou as normas das próprias instituições de Psicanálise? E se a melhor resposta fosse a última opção, haveria outro problema, pois são várias instituições com suas próprias regras, portanto, de qual delas seira a prioridade da IPA, das escolas francesas, inglesas, ou norte-americanas ? Ou então, cada escola teria seu critério e forneceria uma “chancela” para o profissional?

No outro oposto da equação teríamos a possibilidade de nenhuma regulamentação. Neste caso aquele que queira trabalhar com esta disciplina poderia mergulhar nas profundas águas do próprio inconsciente, estudar a teoria e fazer uma supervisão ou análise de controle, conforme as tendência da escola da qual se aproximar. Mas, neste caso, quem garantiria os profissionais que o atenderiam nesta sua construção profissional? Ou mesmo, o que garantiria que qualquer um não poderia auto-intitular analista sem ter percorrido o caminho do tripé da formação? As próprias regras do “mercado”?

Neste ponto, pode-se perceber que algumas destas perguntas já contém suas próprias respostas, pelo menos no que diz respeito à forma que poderia se esperar de uma formação, e talvez esta mesma forma tenha alguma garantia de que este processo direciona o candidato a ter algo de analista em algum ponto, ou à desistir da empreitada. Talvez, isto seja um pequeno delírio pessoal, mas parece que aquilo que é conhecido como tripé  – que consistiria no estudo da teoria, na análise pessoal (experiência subjetiva com o inconsciente) e na supervisão dos casos atendidos pelo candidato – possa acrescentar alguma esperança ao processo. Pois, espera-se que em algum momento o desejo de tornar-se analista seja conteúdo de trabalho de sua própria análise, assim como o estudo poderia levantar questões sobre a possibilidade de atuar com aqueles conceitos, e este trabalho que começa primeiramente com o esforço para compreendê-los. Acrescenta-se a isto a experiência de atender a queixa de outro e conseguir utilizar tanto a experiência pessoal – do analista – com a análise, quanto o estudo teórico para atuar. Parafraseando um dos excelentes personagens de Goethe: “É em vão que se vagueia de ciência em ciência: cada um aprende somente aquilo que pode aprender” (Mefistófeles – em Fausto).

Estas dificuldades inerentes da própria prática do psicanalista já podem ser uma espécie de avaliação que geraria uma “linha de corte” natural. Acrescentando que talvez o próprio “mercado” possa fazer também esta função, tendo em vista que um mau direcionamento não seria de grande ajuda para manter-se como profissional[1]. Mas, esta sem dúvida não é uma equação perfeita, assim como também não são as propostas de regulamentação vigentes. Corre-se aqui o mesmo risco que acreditavam correr os antigos navegadores gregos: Quando navegavam muito próximos a uma das bordas do mundo eram ameaçados pelo monstro Cila, mas se tentassem se afastar demais deste, corriam o risco de aproximar da outra extremidade e cair nas garras de outro monstro, Caríbdis. Portanto, ao se navegar entre Cila e Caríbdis, é aconselhável não recorrer aos extremos.

Assim, na questão da formação do analista, o tripé acena como esperança, tendo em vista que é em essência comum às diferentes escolas de psicanálise, e  mantém em sua base a experiência com o próprio inconsciente, pois é esta experiência que pode não ser garantia para que se faça um analista, mas é sem dúvida, pré-requisito.

Não há garantias, só a do desejo…

Referência consultada:

  •  LIMA,A. Projeto de lei 64/2009.

[1] Isto não levando em conta a possibilidade de um Darwinismo social às avessas como mostrado no divertido filme Idiotopia; uma comédia de divertimento fácil, mas que tem uma proposta de fundo muito interessante, pois o autor extrapola o raciocínio de que em uma sociedade onde os mais bem sucedidos socialmente não são os intelectualmente mais capazes a “seleção social” levaria a um futuro no qual o mundo seria dominado por aqueles que conseguissem entreter as massas e enriquecer com isto, levando a uma seleção subvertida que resultaria em uma sociedade bem pouco capacitada para resolver até os problemas mais simples do cotidiano.

Algumas questões sobre a medicalização na infância: Ritalina.

O estimulante metilfenidato, conhecido por Ritalina (ou Concerta), tem sido largamente utilizado como medicamento para transtornos relacionados à atenção e hiperatividade em crianças e adolescentes. Alguns dados em relação a necessidade de rever um alto número de diagnósticos de transtornos na infância nos incitam a levantar um sinal de alerta quanto à alto quantidade de prescrição deste fármaco, assim como de outros medicamentos psicoativos na infância.

Alguns questionamentos são necessários, principalmente ao se constatar a alarmante quantidade de diagnósticos que apontam a necessidade do uso da Ritalina (e mesmo de outros medicamentos psicoativos para crianças), assim como pesquisas que indicam a necessidade de reavaliação de um alarmante número de diagnósticos que podem ser imprecisos (que fique ressaltado, feitos por profissionais de diferentes especialidades tanto da Medicina quanto da Psicologia).

É comum na clínica o contato com crianças que foram medicadas mesmo quando exames neurológicos apontaram para o equilíbrio deste sistema, assim como não terem passado por qualquer levantamento de indícios comportamentais  que apontem a necessidade do psicofármaco (geralmente apenas o relato dos pais e de situações pontuais), sendo que em geral, nestes casos, o fator preponderante para a decisão pelo uso da medicação tem sido a demanda dos pais, ou da escola; o que obviamente não é adequado.

Abaixo está posto um vídeo produzido pela rede Globo News, com algumas entrevistas e uma fala da Dra. Moysés da Unicamp. Talvez alguns apontamentos no vídeo tenham sido radicalizados, mas acredito que possam ser uma saudável provocação para a reflexão sobre o tema.

Contribuem também para a discussão os seguintes artigos acadêmicos:

Segue o vídeo:

Globo Vídeos – Brasil é segundo maior consumidor mundial de ritalina