Escutar o Sintoma: Escutar o Sujeito

 

Quando Lacan, em seu seminário de 1971, anunciou que falaria de um discurso que não seria o seu, tampouco do indivíduo, reforçava a ideia freudiana de que a concepção de sujeito* para a psicanálise requer considerar que este não é possuidor do discurso, mesmo que, determinado por ele. Isto quer dizer (entre outras coisas), que o Eu não é totalmente senhor de si, pois há acontecimentos que permanecem além da consciência mas aos quais o sujeito permanece respondendo, se adaptando, resistindo e que, algumas vezes, por não ser um sistema perfeito, acusam conflitos que se apresentam  como sintomas.

Sem adentrar em questões da psicopatologia, que exigiriam classificar e nomear tais sintomas, vamos pensá-los, de forma ampla, como aquilo que gera sofrimento. Mas, atenção leitor, pois a quebra de paradigma que Freud apresentou é que tal sintoma não é um acontecimento aleatório (embora possa contar com estes), mas sim um acontecimento que tem uma função e, vai além, pois afirma que esta função tem, em sua gênese, a “chave” para “quebrar o código”, a solução para diminuir o sofrimento.

Mas, como seria operar de forma contrária? Neste caso, Alfredo Jerusalinsky, ao falar de como a psicopatologia procura toda explicação em uma causalidade orgânica, ou em um déficit cognitivo, acaba por não questionar o sintoma, não investigar “o que quer dizer este ponto, esta palavra ou este gesto fora do lugar […]; é assim que os problemas deixam de ser problemas para serem transtorno. É uma transformação epistemológica importante, e não uma mera transformação terminológica. Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido; um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta” (Jerusalinsky, 2011, p. 238).

Portanto, esta distinção não é puramente um exercício teórico, já que é através dela que a direção do tratamento em psicanálise se distingue do campo geral das psicoterapias, como Freud aponta em seu discurso de 1905: “A terapia analítica não deseja acrescentar ou introduzir algo novo, mas sim retirar, extrair, e para isso cuida da gênese dos sintomas doentios e do contexto psíquico da ideia patogênica, cuja remoção é seu objetivo” (Freud, 1905).

Para ilustrar esta afirmação, Freud lança mão de uma analogia. Nesta, o método do tratamento analítico consistiria em retirar camadas para atingir o núcleo do sintoma, como o escultor que retira fragmentos de rocha para revelar o que o bloco bruto estaria encobrindo, em oposto ao método que introduziria algo novo, como um pintor que marca com sua tinta uma tela – que acredita – estar em branco.

Para concluir, podemos perceber que há na ética psicanalítica um apreço pelo mais singular do discurso do sujeito (que não é mesmo que indivíduo), o que não permite que a posição do analista seja a daquele que objetiva determinar a direção do tratamento visando um modo “correto” de atuar no mundo, pois para isto precisaria compreender o sintoma como uma deficit a ser corrigido e não como uma produção que traz, nela mesma, pistas do que há de inconsciente por trás daquele sintoma; pistas que levariam ao saber sobre o sujeito, possibilitando que este passe a se relacionar de uma nova maneira com o mundo. Talvez mais singular, talvez menos, mas certamente, sua.

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PS: Esta distinção é essencial para que a direção do tratamento possibilite gerar os resultados positivos que a literatura tem atribuído à psicanálise. Aliás, há duas excelentes meta-análises que demonstram estes resultados, tanto a médio como curto prazo. Mas isto é assunto para outro texto.

*A definição de sujeito para a psicanálise, assim como sua distinção em relação ao individual, é um tema complexo que remonta às definições de discurso e linguagem. Mais sobre isto pode ser encontrado no Seminário XVIII de Lacan, página 16-17 da tradução brasileira da Zahar.

Referências Gerais:

Branco, D. R. (2014). Dissertação de mestrado: O Sintoma Em Psicanálise: Entre o Corpo e o Sentido. Universidade Estadual de Maringá: Maringá.

Freud, S. (1905). Psicoterapia. São Paulo: Companhia das Letras.

Jerusalinsky, A. (2011). Gostinhas e Comprimidos para Crianças sem História: Uma Psicopatologia Pós-Moderna para a Infância. In: A. Jerusalinsky, & S. (. Fendrik, O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (pp. 231-242). São Paulo: Via Lettera.

Lacan, J. (1971). O Seminário Livro 18: De um Discurso que não fosse Semblante.. Rio de Janeiro: Zahar.

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