Reclusão e Angústia – Poste depois de ler

 

“Tenho medo do futuro… Tenho medo de que isto tudo seja apenas um acidente”.

Assim começava uma série de publicações realizadas pelo ator e compositor Donald Glover em 2013, na rede social Instagram. Contrariando o padrão das redes, as postagens chamaram a atenção de fãs, mídia e colegas do ator; confusos, preocupados, entenderam como uma espécie de pedido de socorro, um grito de desespero. Esta história fica mais interessante com um salto 5 anos à frente no tempo. Glover, então já consagrado em Hollywood tanto no filme Solo, quanto na série Atlanta lança, em 2018, a impactante música This is America, onde demonstra sua capacidade de criar vários níveis de crítica à indústria cultural, utilizando sua própria máquina para propagar sua arte, infectando silenciosamente o mundo tanto com uma poderosa mensagem crítica sobre o racismo, quanto com uma ressoante demonstração do próprio ruído produzido pela mídia, para encobrir o sofrimento daqueles que têm seus corpos esgotados e objetificados pelos diversos ismos que permeiam as relações sociais.

Voltando a 2013. É possível que na ocasião o artista estivesse expressando seu real sentimento; porém, o efeito de suas palavras foi muito além de seu sentido direto; ao falar de medo e tristeza usando sua mídia pessoal, realizou o mesmo feito que mais tarde conseguiu com This is America; já que de dentro da própria rede questiona a realidade daquilo que as pessoas postam em suas mídias sociais. Em ato, demonstrando sua capacidade de elaboração em diversos níveis, conseguiu desferir um golpe do interior do próprio monstro, fazendo com que suas palavras fossem apenas o veículo para o verdadeiro soco no estômago, este sim, causado pelo meio que Glover utilizou para expressar sua mensagem. A mensagem em si, era apenas uma isca, assim como a dança em This is America tem a função de atrair o olhar e demonstrar como a mídia esconde o que se passa no fundo da imagem; chama a atenção para a verdadeira crítica que está no sentimento de fora-de-lugar que suas palavras causaram. Uma rede conhecida por fotos de momentos felizes, viagens, festas e paisagens, não comporta questionamentos sobre a vida, não suporta nada que fuja à imagem fantasiosa de felicidade e rendimento absolutos que, ali, são a norma. É desagregador demais para a imagem de perfeição, que todos oferecem em suas timelines. O feito de Glover alcançava, com isto, o efeito de uma verdadeira intervenção artística, como as definiu o filósofo alemão Christoph Turcke, ou seja, aquela que escapa à indústria cultural ao utilizar seu próprio maquinário mercadológico para criticá-la.

 

 

Infelizmente, as ações como as de Glover são um ponto fora da curva que não deixam de ter grande importância para apontar a relação que estamos construindo com estas redes precisam ser repensadas. Como aponta Christian Dunker, em seu livro Reinvenção da Intimidade, as mídias trouxeram uma espécie de sobreposição entre o público e o privado, um emaranhamento entre o íntimo e o compartilhado, na medida em que o indivíduo dá-se a ver; mostra a todo momento em seu canal pessoal o que, antes, era reservado a permanecer confinado ao lar, ou apenas conhecido pelos fisicamente mais próximos.

Mas, engana-se aquele que pensa que se pode mostrar tudo, nas redes a liberdade de expressão vai até o limite de sua própria constituição, pois cada um exibe uma parcela de sua intimidade milimetricamente calculada para conquistar o outro, pensada para gerar engajamento e otimizar a resposta do algoritmo. Calcula, anseia e sofre. Sofre na busca por um ideal de “intimidade” padronizado, sofre no medo de estar sempre deixando de ver e participar de algo (FOMO). A angústia do questionamento, como escancarou Donald Glover, não tem lugar neste álbum de intimidades fabricadas, de realidades filtradas; neste discurso altamente mediado, exibir o  sofrimento representaria um déficit moral, uma falta que dá testemunho de um indivíduo incapaz de acompanhar uma sociedade, por sua vez, cada vez mais pautada pela exigência de produtividade. É a árida realidade que deve manter-se sob o véu da Matrix.

 

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Matrix: Lana e Lilly Wachowski (1999)

 

Antes de pensar que  isolar-se Na Natureza Selvagem (2007) é única saída, vale lembrar que, como toda ferramenta as redes podem ser utilizadas para construir ou destruir; formas diferentes de uso geram resultados distintos. É inegável que elas possuem alguma funcionalidade principalmente nestes dias de isolamento social, causado pela pandemia do COVID-19, quando os corpos precisam estar fisicamente distantes, deixando o virtual como saída segura. Neste contexto, as redes sociais têm sido o meio de manter algum contato social com amigos e familiares, de comunicação de forma geral e até mesmo criar redes de discussão política ou de combate às Fake News sem, com isto, colocar a vida de muitos em risco. Entretanto, levantamentos sobre saúde mental apontam para altos níveis de sofrimento subjetivo como um conhecido efeito colateral, o que aponta para a necessidade de discutir seriamente o uso que tem sido feito delas, e como estas mídias usam o social como forma de usar o indivíduo como produto extremamente lucrativo para suas redes de anunciantes. Este aprisionamento subjetivo, nos leva a crer que a estrutura de funcionamento dessas redes faz eco com estruturas do próprio sujeito, algo que poderia ser resumido como um tipo de aplicativo atávico que em nós, seres atravessados pela linguagem, calcula incessantemente o que devemos mostrar ao outro para sermos amados; o que, neste caso, as mídias sociais habilmente traduziram em likes, comentários e republicações. Assim, a mídia pessoal de cada um, captura o desejo de fazer laço com o outro, de ser valorizado, mesmo que para isto seja necessário criar uma versão fantástica de cada um, uma versão social e midiática de si mesmo.

Isto não é um pressuposto único das redes, pois é claro que, sendo um ser social, o humano traz em sua estrutura esta tendência a fazer laços, a procurar formas de ser amado pelo outro; mesmo que para isto precise tentar anular seus próprios desejos; esta é, em linhas gerais, a novela de todo neurótico. Mas, quando há um dispositivo que faz um encaixe quase perfeito com esta estrutura subjacente, o resultado é uma edição, repleta de cortes, dos melhores momentos do dia de cada um, sejam espontâneos ou fabricados, apresentados constantemente em um carrossel de atividades, que vendem o melhor “way of life” ao estilo das mídias: Seja você mesmo, sendo igual a todos. Nesta edição, com cortes cirúrgicos do diretor, são exibidas práticas de yoga, trabalho, meditação, treinos, leituras, festas, escritos influenciadores e motivacionais e… Cansa só de escrever!

Cansa, mais ainda, de tentar acompanhar, replicar e acreditar nesta vida paralela das redes, que se tornou um simulacro de filme editado para ser uma versão feliz, inteligente e autogerida da vida de cada um. Cansa, como diz o filósofo Byung-Chul Han (A Sociedade do Cansaço) de ser este empresário de si mesmo; um autogestor constantemente cobrando rendimento otimizado, no trabalho, na vida social, nos relacionamentos românticos, até mesmo no descanso durante o isolamento social. Cansa e gera ansiedade que, como mais um produto a ser eliminado pela indústria do bem-estar, também entra no ciclo de exigências: o que você está fazendo que não está trabalhando para controlar esta ansiedade?! Como não consegue dormir 8 horas ininterruptas diariamente?! É um loop eterno de uma mente sem descanso (Michel Gondry – 2004).

Esta angústia por rendimento, e o medo constante de que estar perdendo algo muito importante, não são novidades. Elas estavam aí; um vírus ideológico que vem se reproduzindo há pelo menos meio século, um vírus de sintomas brandos, que utiliza o maquinário do capitalismo selvagem para disseminar-se entre o homem, o primata menos sustentável (Titãs – 1985).

A diferença, a novidade que o isolamento social trouxe é que estas falácias não colam mais. Não colam mais, pois a partir do momento que as limitações passaram a ser de todos, a partir do momento que outro vírus – desta vez real – colocou todos em um jogo que obriga a avaliar as ações mais cotidianas, a dúvida começa a surgir, o preço do tempo começa a ser levado em consideração e os padrões anteriores de rendimento são desmontados. Perdem a cola, já que o vírus imaginário do passado insistia em defender que não é possível parar, que parar seria o fracasso de nossa sociedade, enquanto o vírus real – SARS-CoV-2 – mostrou à força que é possível parar, que a locomotiva da produção não é um moto perpetuo. É possível parar e observar que a Natureza responde imediatamente a isto, dando sinais de seu alívio. É preciso parar, mesmo com todas as dúvidas que isto nos traz;  pois sem todo o ruído, sem todo o barulho do rendimento a todo custo, há que se estar com os filhos, que se defrontar com laços ignorados, que pensar nos que estavam à margem da produção capitalista, já que a continuidade depende de manter viva ainda alguma coesão social, há luto pelo que irá ser perdido, seja econômica ou socialmente. Mas, além de tudo isto, há que se avaliar para onde iremos voltar!

 

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A cordilheira dos Himalaias reapareceram para uma vila indiana após 30 anos de encobrimento pela poluição.

 

Bruno Latour, um filósofo contemporâneo, lembra que a crise do Corona vírus é apenas uma prévia da crise global que está, há décadas, sendo construída pela degradação ambiental. Talvez o normal, a norma anterior, não retorne mais, cabendo a todos delimitar qual será a nova norma; pois, quando o real bate à porta, ou foge-se para a negação delirante, ou enfrenta-se com coragem o vírus que já estava aí mas, com muito esforço, vinha sendo ignorado, mesmo dando notícias de sua existência no alto nível de sofrimento, no mal estar, na ansiedade diária e na sintomática exposição de uma intimidade fantasiosa nas redes sociais; fantasia que começa a cair por conta de um rasgo na realidade pandêmica de nossos dias, forçando o questionamento sobre o que cada um tem buscado naquela, velha, fantasia. Uma parada forçada que nos dá a oportunidade de questionar onde estamos e para onde queremos ir, sem garantias de sucesso, mas uma aposta indispensável e uma pergunta ainda em aberto. Por isto, lembre-se, se encontrar a sua resposta, não se esqueça de postar.

 

Referências:

Dunker, C. I. L. (2017). Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu.

LATOUR, Bruno. Down to Earth: Politics in the New Climate Regime. Medford: Cambridge, 2018.

Análise de This Is América: https://www.youtube.com/watch?v=gvsQ09wM-bU&t=9s 

ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.

Saúde Mental e Corona Vírus: Brincando de se Esconder

 

 

Em meados de Março de 2020, a realidade nos impôs medidas coletivas para lidarmos com a pandemia do COVID-19, dentre elas o isolamento social tem se mostrado a mais eficiente. Porém, além da própria exigência de agir pensando no bem comum, o isolamento traz desafios em termos de trabalho, convivência familiar (ou a falta dela), psicoterapia online, economia e até mesmo a percepção da ameaça.

Ao acompanhar pacientes que fazem análise online, por residirem fora do Brasil em locais onde a disseminação do vírus está em estado mais crítico, pude perceber algumas questões frequentes e dificuldades que se passa quando se permanece em isolamento por vários dias ou, algumas vezes, semanas.

Dentre elas,a sensação de desaceleração do tempo, da lentidão da passagem dos dias, a intensificação dos conflitos familiares causada pelo convívio mais intenso; enfim, diversas formas de angústia que poderá gerar sofrimento caso não tenha saída produtiva. Neste sentido a escuta especializada por um profissional da Psicologia, ou psicanálise, que seja capaz de flexibilizar seu setting de atendimentos para a modalidade remota (online) pode ser um grande diferencial.

Pois, existe a facilidade de que nestes momentos, pensamentos paranoicos, ou de excessiva preocupação com isto que há de tão inapreensível de um vírus, ou uma infecção que acontece pelo ato de respirar, podem se desenvolver com tanta virulência como o próprio COVID. Deve-se levar a sério esta pandemia, mas ainda mais a sério o desafio de cumprir todas as recomendações da OMS sem perder a saúde mental.

Para isto, uma forma mais leve de encarar este desafio é fazer uma analogia com a brincadeira de ”esconde-esconde”. Como no jogo infantil, ganha aquele que não for encontrado, ou o que for encontrado por último: Portanto, contra o Corona Vírus, ganha aquele que o vírus não conseguir encontrar, ou o que seja encontrado o mais tarde possível para que o sistema de saúde tem maiores chances de atender aos mais expostos e vulneráveis à doença.

Com solidariedade, pensamento coletivo e calma, todos podemos passar por este significativo momento de mudança, procurando torná-lo o mais produtivo possível, mesmo que seja brincando de se esconder. 

Houvesse apenas um caminho…

 

Houvesse apenas um caminho, todos os caminhantes se encontrariam, mas não saberiam seus nomes, pois suas vozes seriam a mesma. Escrevi esta frase em um cartão para uma pessoa querida, como forma de desejar que, em seu percurso pela vida, encontre um caminho próprio em meio ao turbilhão de informações e exigências. Parece missão simples, mas nada fácil. Mas, além de ilustrar a intenção de um presente festivo, a frase denota que este tema tem circulado em meus pensamentos com certa frequência; seja por conta das questões que ouço na clínica, de minha área de pesquisa acadêmica ou pelo próprio contexto social deste início de década.

Antes de que o leitor pense que o texto será de cunho motivacional, que não se engane, pois ainda me  parece mais útil exercitar o pensamento crítico antes de interpretar a frase como um convite para que cada um “seja você mesmo”, um pleonasmo inevitável da obviedade. Por isto, trata-se de um questionamento sobre como a tecnologia que nasce para unir pessoas, acabou se tornando, a nível individual, fonte de sofrimento mental, assim como, a nível social, constante preocupação quanto aos impactos negativos sobre as instituições democráticas que dão suporte à civilização.  

Em 2020 George Orwell*, caso vivo, ficaria espantado ao descobrir que seu Big Brother não precisaria espionar ativa e secretamente a vida dos cidadãos, pois todos transmitiriam de forma voluntária sua intimidade e prestariam, sem questionamentos, contas de suas preferências, comportamentos, ideias e ideais, impulsionados pelo desejo algo inconsciente de serem avaliados, homogeneizados e padronizados. O autor de 1984, veria que as instituições de controle e observação seriam obsoletas se comparadas a uma forma muito mais sutil de monitorar, mensurar e direcionar comportamentos sem a necessidade de violência direta, para as quais não houve qualquer imposição de uso, pois todos aderiram solicitamente a seu uso e a alimentam com informações pessoais de bom grado. Orwell certamente se espantaria com o poderio levantado por Mark Zuckerberg, pois aqui já deve estar claro que estamos falando das mídias sociais.

Para jogar alguma luz àquilo que se tornou normal a ponto de não ser mais percebido, é importante entender que as mídias sociais não são um serviço que você utiliza sem custo material. Este custo pode até não ser de moedas que saem de sua conta ao logar em seu perfil, mas é capitalizado em produto ainda mais valioso, ou seja, você paga com sua atenção que será vendida a anunciantes, assim como também paga com seus comportamentos, preferências e padrões de usuário, base de dados a ser utilizada por empresas como a Cambridge Analytica para moldar anúncios e campanhas feitas com precisão, para que você não resista, seja a comprar um produto, ou para alterar intenções de voto de parcelas significativas da população. É o bom e velho ganha-ganha. Claro, para a empresa que pode lucrar tanto com a política de teclado, como com política de Estado.

Mas, esta ainda não é a jogada de mestre desta tecnologia que faz o Big Brother de Orwell parecer um automóvel dos anos 60, barulhento e pouco eficiente, pois o grande salto está no poder de aprisionamento subjetivo ofertado pelas mídias sociais. Perceba o leitor que este aprisionamento não é imposto, pois não existe, como no romance de Orwell, um Partido que obriga o assujeitamento de todos à sua necessidade de espionar e controlar. O verbo aqui escolhido foi ofertar, porquanto trata-se de oferecer as condições, a plataforma ideal  para que a captura aconteça com a solícita participação de todos que, sabendo ou não, doam-se de corpo e corpo aos olhos de cada pequeno (e grande) outro, em via escópica de duas mãos, criando uma constante relação de olhar e ser olhado, desejar e ser desejado a cada deslizada de dedos pela tela. Entrega-se a chave da prisão em troca de likes, retweets e seguidores.

Jacques-Alain Miller** comenta que é o desejo de ser avaliado que dá aos avaliadores poder sobre ao avaliado, aos moldes dos vampiros da Ficção, é necessário convidá-los a entrar. Porém, ao desejar a constante avaliação, dá-se aos avaliadores o poder de extinguir quaisquer possíveis traços diferenciais do sujeito, criando ideais cada vez mais padronizados de felicidade, sofrimento, sexualidade etc. O autor escrevia em 2003, muito antes do advento dos smartphones (que ocorreria por volta de 2007), no contexto das  avaliações de classes profissionais; mas, a estrutura das relações entre o sujeito e os ideais culturais, que Miller levanta neste texto, é aplicável à realidade que estamos aqui discutindo, pois indica o desejo neurótico de ser constantemente aprovado, chancelado pelo amor do Outro***. O que muda, é que a figura do avaliador seria substituída pelo coletivo que dialeticamente avalia, enquanto é também avaliado e direcionado não mais pelas instituições, mas pelos algoritmos que definem o funcionamento das plataformas de usuários.

Mas, não deixai toda esperança, ó vós que logais. Houvesse apenas um caminho, todos os caminhantes se encontrariam, mas se perceberiam sem voz, pois, a angústia de descobrir-se sem nome próprio, andando pelos algoritmos a depender dos likes e visualizações daqueles que tropeçam pelas redes, tem dado espaço a movimentos no sentido de controlar a ferramenta que pretendeu conquistar os artesãos (Mark que se contente). É o próprio mal-estar que nos leva, cada meia-volta da História, a questionar a própria civilização e as trocas que esta exige de seus civilizados indivíduos pois, aparentemente, é preciso perder a liberdade para poder lutar pela mesma. Neste sentido, resta apostar no fracasso desta prisão sem muros criada pelo (mal) uso das redes, que se expressa em forma de sofrimento como o medo de estar sempre perdendo algo (Fear of Missing Out: FOMO). Fracasso que possibilita que sejam criados novos caminhos, novos nomes, novas formas de se caminhar, com passos cada vez menos (algo)ritmados, de forma que seja possível tomar posse dos próprios desejos, sem ignorar a responsabilidade que isto implica. Afinal de contas, é o sofrimento de estar a-sujeitado que possibilita que possa fazer-se um sujeito.

 

 

*George Orwell (1903-1950), escritor, autor do romance distópico 1984.

** Você quer mesmo ser Avaliado? (Miller, J-A., 2003)

***A noção lacaniana de Outro – “grande outro” – trata-se de uma realidade discursiva, pertencente ao registro do Simbólico na qual se supõe a participação de um outro – no sentido de alteridade – mas que não se identifica totalmente a um sujeito.

Fugir para a Natureza, ou encontrar-se com ela?

Um artigo publicado em 2008 por Berman, Jonides e Kaplan já demonstrava que caminhar pela Natureza, longe dos estímulos urbanos, traz benefícios cognitivos como restauração de algumas capacidades essenciais à memória e ao foco. Depois disto, vários outros artigos foram publicados indicando benefícios para auxílio no tratamento de ansiedade, depressão e bipolaridade, alguns com resultados bastante promissores (sem, contanto, dispensar o tratamento Psi).

Provavelmente, quem já teve este tipo de experiência de desligamento do fluxo cotidiano concorde com estas pesquisas. Com a procura cada vez maior de pessoas por esportes na natureza, mais dados tem sido produzidos corroborando a hipótese de que o contato com o mundo natural traz benefícios à saúde além da atividade física em si. Mas, apesar de relevantes, estes dados merecem levantar outra questão. Que direção nossa sociedade está tomando, que o dia a dia passa a ser considerado tóxico, a ponto de necessitarmos de momentos de fuga para restauração de capacidades mentais básicas?

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Aparados da Serra – 2019.

Os movimentos como das Slow Cities (que se inspiraram no Slow Food) perceberam isto já há algum tempo e “desaceleraram” o ritmo, afim de permitir maiores laços entre os indivíduos, maiores laços comunitários e… (surpresa!) melhor qualidade de vida.

Portanto, fugir para a natureza pode ser um bálsamo para o aceleramento, assim como para as cobranças da “vida”. Mas, quem sabe, da natureza podemos trazer o sossego, o equilíbrio e a sustentabilidade para nosso dia a dia. Sustentabilidade de retirar/produzir aquilo que necessita, consumir o que é necessário e não mais pois, mais, nestes casos, significa mais custos, mais trabalho, mais cobranças, mais sofrimento. Este “mais”, que não tem fim, significa a entrada no tóxico ciclo que gasta o planeta, consome o sujeito e desgasta relações e comunidades.

É possível que a solução esteja bem diante de nossos próprios olhos e que, com menos e não mais, o dia a dia poderia ser menos tóxico, para que a Natureza possa ser uma opção de encontro constante, e não de fuga desesperada.

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Foto de Bruno Haller, Aparados da Serra, RS, 2019.

A sua opinião tem dono?

Provavelmente você nunca de ter ouvido falar em engenharia do consentimento, mas certamente vai reconhecer seu funcionamento depois que souber um pouco mais do que se trata, e de como isto influencia em suas opiniões e modo de ver o mundo.

A engenharia do consentimento é uma ferramenta amplamente utilizada para direcionar a opinião pública sobre determinado tema, valendo-se para isto dos mecanismos de funcionamento mental mais básicos, como empatia e medo, para criar engajamento do indivíduo em relação a um grupo, ou a um tema que interesse a este grupo. Parecem aqueles enredos de filmes de conspiração do começo dos anos 2000, mas na verdade é algo de que se tem notícia desde o início dos anos 1900, tendo maior uso (e sucesso) após os anos 50, fundando as bases para o que hoje chamamos de Marketing.

Porém, esta forma de manipular a opinião pública toma cada vez mais o interesse dos pensadores atuais tendo em vista seu poder cada vez maior sobre um público cada vez mais polarizado. Um exemplo é o internacionalmente respeitado linguista Noam Chomsky, que retrata o efeito deste formato discursivo em seu livro “Mídia, Propaganda Política e Manipulação”, além disso você também pode se aprofundar no assunto através de seu documentário “O fim do sonho americano”  (abaixo) Ou então em “O Século do Ego” dirigido por Adam Curtis para a BBC.

 

Mas, e como fica o questionamento inicial de se você é dono de sua própria opinião?

Bem, para explicar como é possível direcionar a opinião das pessoas diante de uma situação, fiz um rápido experimento utilizando o Instagram (@danielrbranco), no qual foi explicado como a manipulação acontece e logo após duas fotos foram postadas com uma pergunta. Como nos dias desta postagem (e ainda hoje) a situação na Venezuela tomava conta de todos os noticiários, usamos este tema para formular duas questões diferentes.

Segue abaixo a explicação que foi postada antecedendo as imagens, que aqui se presta também a falar um pouco mais da tal engenharia para criar engajamento:

“Uma das formas de manipular a opinião pública é alterar o sentido de um significante como, por exemplo a palavra guerra. Se perguntarem a você se apoia a guerra na Venezuela, ou uma intervenção armada, há grandes chances de que diga que não, mas se perguntarem se apoia uma ajuda humanitária, existe um apelo à empatia pelo sofrimento (neste caso real) dos povos do local e por isso, aumenta-se muito as chances de o indivíduo dizer que sim, apoia a ação do Estado. O mérito neste exemplo, não é se a Venezuela precisa de ajuda, mas sim faz com que as medidas para esta ajuda não sejam questionadas pois, ninguém questionaria uma ajuda humanitária. Todos os meios de comunicação insistem no termo, insistem na sua necessidade urgente, repetem a ideia até que a população “espontaneamente” esteja pedindo pela ajuda humanitária que pode resultar, na verdade, na intervenção armada que era o sentido original da proposta. Apenas após isto, surgirão dados que questionarão por que a ONU não participou, porque o grupo menos belicoso que se reuniu em Montevidéu não recebeu atenção da mídia? Quais os reais interesses norte-americanos na Região?

Esta manipulação, que faz uma apreensão do sujeito, impede que este faça questionamentos básicos e simples sobre a situação que se apresente em sua realidade cotidiana. Não por falta de inteligência, mas porque outros mecanismos psíquicos tomam conta de seu pensamento. Outros exemplos? Parear a imagem de feministas à da bruxa (veja artigo na revista Cult), pessoas de postura progressista com terroristas, etc…”

Após esta explicação, foram postadas as duas enquetes, na sequência que seguem aqui, após a frase de introdução: “Ok, vamos testar como isto funciona?”.

 

O engajamento para o “experimento” foi alto, atingindo em torno de 1200 usuários do aplicativo que seguem o perfil. Percebam que, mesmo após a explicação do que seria feito e o aviso de que isto seria um teste para saber se aquilo que foi dito realmente teria efeito apenas com a mudança do sentido dado pela escolha de palavras e imagens, a adesão ao SIM foi muito maior na primeira imagem do que na segunda.

Mas, como isto é possível se o raciocínio e a lógica são as mesmas? Como é possível uma mudança de opinião de praticamente 50% dos votantes no período de 15 segundos entre uma imagem e outra?

Apesar disto ser apenas uma brincadeira, não se tratando de um experimento controlado, é capaz de levantar algumas ideias interessantes sobre como o aparato de Estado (e certamente também de mercado) conseguem induzir a resposta da população frente a uma decisão. A simples mudança de palavras e imagens é capaz de direcionar o que as pessoas pensam sobre determinado assunto, apoiando muitas vezes posturas das quais nada sabem, ou para aquelas que não buscaram saber sobre sua História e quais as motivações dos personagens envolvidos em cada lado do espectro.

Não há uma resposta definitiva de como lidar com este fenômeno, mas uma boa pergunta pode ser melhor do que uma resposta parcial, por isto, sempre que for apoiar algo (ou alguém) sem saber com alguma profundidade sobre o assunto, pergunte-se: “Você é dono de sua própria opinião?”.

O Jardim das Ilusões!!

Olá seres atravessados pela era da Informação. 

Por conta da demanda dos alunos de graduação, que se vêm frente a uma enxurrada de informações que precisam ser filtradas, percebo certa confusão em relação a saber o que é, e o que não é confiável para ser usado como referência. 

Bem, seguem aqui algumas direções que úteis tanto para quem está em fase de pesquisas acadêmicas, estudos para atuação profissional, quanto para quem faz leituras ou consome conteúdos de forma espontânea seja em blogs, youtube, podcasts e mídias sociais. 

A primeira orientação a se ter em mente é: uma informação ser publicada em um livro não é garantia de sua consistência. O mesmo vale para publicações em revistas de circulação geral (não acadêmicas), vídeos no youtube, posts do twitter. O que é dito, precisa ser verificado, isto é parte do processo de aprendizagem.

Isto leva à segunda orientação: Quem é o autor? Qual a confiabilidade da fonte desta informação?

Verifique a relevância do autor e sua produção técnica/acadêmica antes de citá-lo. 
Mesmo as novas teorias quando surgiram na história, por mais que tenham enfrentado certa resistência acadêmica, estavam sustentadas por um conjunto de teóricos/técnicos que a endossavam. Um exemplo é a própria psicanálise com a “sociedade das Quartas-feiras”, formada por médicos e estudiosos interessados, como Freud, em estudar a fundo o psiquismo Humano. Mesmo nestas casos, apensar de uma resistência inicial, uma construção de conhecimento séria demonstra consistência teórica que se manifestam em dados e publicações que conquistam prestigio entre outros cientistas, que por sua vez irão citar estas publicações em suas próprias.

De extrema importância para a ciência do conhecimento (epistemologia), Thomas Khun definiu que a estabilidade de um campo científico pode ser observada pela aceitação dos paradigmas deste pela comunidade de pares deste campo. Khun previu que discussões entre escolas são possíveis e até fazem parte do processo esperado em uma revolução científica porém, em momento algum sustenta que uma linha de pensamento poderia se sustentar diante da total desaprovação do meio científico.

De forma prática, existem indicadores para saber o quanto um autor é citado em sua área. O próprio Google scholar (acadêmico) é uma forma simples de saber o índice de citações de um autor que recebe por sua obra, o chamado i-10. O cuidado a ser tomado nestes casos é verificar de forma não apenas quantitativa (número de citações), mas também qualitativa, para evitar aferir credibilidade a algum autor que esteja sendo citado por ser constantemente refutado, ou apenas citado como alegoria, o que seriam na verdade indicadores negativos de confiabilidade. Mas, como fazer isto? Indo às fontes, lendo, pesquisando… Afinal, como diz Contardo Calligaris em sua coluna à Folha, para não dar opiniões esdrúxulas, leia pelo menos 4 livros de autores diferentes sobre o assunto. 

Portanto, desconfie de quem produz somente fora do meio acadêmico, isolado e desprezando a academia – geralmente um sinal de defesa. Busque a consistência dos dados e da teoria, procure saber se a interpretação do autor tem ressonância no meio. Sem verificação dos pares (outras pessoas da área) a produção pode ser um mero delírio do autor, no qual você arrisca embarcar quando não busca outras fontes.

O jardim das maiores aflições é o Jardim das ilusões!!

Daniel R. Branco

Ao Cantar na Escuridão…

“Ao cantar no escuro, o andarilho nega seu medo, mas nem por isso enxerga mais claro” Freud, 1926.

No espírito acelerado dos tempos atuais, nos quais a informação se tornou moeda acessível, pelo menos em partes, para todos, a mera possibilidade que o caminho da vida possa não ser totalmente banhado pelas luzes do conhecimento é rapidamente descartada como impossibilidade. Negada, nos discursos que permeiam a existência, até as últimas consequências. Mas, seria isto uma possibilidade real? Seria o saber passível de ser alcançado em sua completude, já que estamos banhados virtualmente por um mundo “High Tech”, que atravessa do espaço mais público ao mais íntimo?

Enquanto a ciência sabe que é a dúvida que gera o conhecimento, o cientificismo (sim, são diferentes) tem a certeza de poder explicar tudo; com a genética prometendo mapear e decodificar todos os traços tanto objetivos, quanto subjetivos, com as técnicas de autoajuda criando métodos a serem vendidos como solucionadores para todas as infelicidades da vida – seja ela individual, matrimonial ou corporativa – com a dogmática de religiões pós-modernas se esmerando em não deixar espaço para a dúvida. Resta somente aos historiadores, filósofos e psicanalistas apontarem o que destoa deste discurso que se apresenta tão sedutor ao sujeito.

Quando Freud escreveu a citação que deu início a este texto, em muitos aspectos o mundo era um lugar diferente. Desde então, a sociedade, a medicina e a ciência tiveram seu percurso,  no qual a ideia de evolução não deve ser entendida como uma linha constante, nem mesmo como uma tendência garantida, mas apenas como um desejo muito compreensível por parte de todos os envolvidos. Mas, um desejo dado como garantido a ponto de que a própria teoria da evolução darwiniana ser interpretada como demonstração desta tal tendência, mesmo que o autor em sua teoria da adaptação, nada tenha dito sobre um empuxo positivo à evoluir. Neste caso, embora a evolução seja uma questão de opinião, a mudança é, esta sim, inexorável e assustadora. Desta mesma forma, lacunas são preenchidas pelo senso comum para lidar com o medo do futuro, do incerto, daquilo que inevitavelmente é obscuro pela própria característica da existência.

O pensamento corrente pouco se alterou nesse longo espaço de tempo, tendo claramente criado soluções para grandes problemas de saúde, mas teve como efeito colateral (talvez necessário) o desenvolvimento de um discurso que vai de um determinismo extremo a uma tentativa de total holismo, mas que têm como ponto de coincidência a neurose por um saber que seja todo; pela total eliminação de qualquer impossibilidade. “Se você deseja, você consegue”, preferencialmente por si mesmo mas, se não for possível a ciência demonstrará qual a forma ou medicação/intervenção correta para tornar viável aquilo que cada um deseja. Uma imposição do sujeito ao contingente que, se levada a sério, possui ares de megalomania, como um delírio iluminista levado às últimas consequências!

Consequências estas que em partes seriam a construção de uma realidade frágil que procura se sustentar em pós-verdades, em figuras de identificação que enlaçam a plateia com discurso duvidoso, mas hábil em criar a desejada sensação de segurança – mesmo que falsa. Tal manobra demanda enorme esforço e investimento subjetivo para evitar o desconforto do não saber… Um salto de fé, mas sobre terreno suspeito!

Freud reconheceu em sua criação que, embora o movimento em direção ao saber seja necessário, há nele uma inerente miopia. Uma visão parcial, constituinte da própria condição humana e necessária para suportar a delicada ex-istência em meio às reais incertezas causadas por inevitabilidades da vida, como o tempo que consome o corpo, a natureza que volta e meia nos prega peças e as próprias ações do Outro, inesperadas e muitas vezes confusas a nosso olhar. Mas, nem por isto, esta miopia seria um acordo sem falhas em nosso processo civilizatório, pois ao ignorar a existência da falta,  tentando preencher todas as lacunas, o sujeito humano se empenha em um esforço fadado a entrar em conflito com a sua própria impossibilidade. Com a impossibilidade que não cessa de testemunhar que por mais luz que se jogue em um espaço, as sombras não deixam de existir, na verdade se fortalecem pela própria ação do ato de iluminar. Onde há luz, há sombra! Assim, ao ignorar este conflito, escancarado por este esboço do Real, o sujeito gera ainda mais sofrimento.

A saída, por mais simples que seja, não se constitui em tarefa fácil, apesar de possível. O mero ato de perceber este engano, de reconhecer sua existência, cria um novo movimento que permite percorrer o caminho do saber, mesmo que este caminho seja sempre parcialmente iluminado. Reconhecer a falta que nos habita pode ser a única forma de lançar alguma luz sobre a realidade de nosso percurso, pois reconhecer o medo do escuro não fará o andarilho enxergar melhor o caminho, mas certamente é uma aposta em saber de sua ignorância, para criar um novo modo de andar, condizente com sua realidade e pronto para resistir aos percalços de sua caminhada.